segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Tudo, menos tempo “comum”

Festa do Baptismo do Senhor
10 de Janeiro de 2021
Is 55, 1-11; Sal Is 12; 1 Jo 5, 1-9; Mc 1, 7-11

 

            Com a celebração do Baptismo do Senhor, termina o tempo litúrgico do Natal e começa o tempo chamado “comum”. Nas outras línguas latinas europeias, e mesmo no inglês, o termo usado é tempo “ordinário”. Porém, em português, “ordinário” significa rude ou grosseiro. Por isso, àquilo que em latim é dito “tempus per annum”, isto é, “ao correr do ano” por contraste aos tempos fortes (Natal e Páscoa), convencionou-se chamar entre nós tempo “comum”. Ora o problema é que este ano começamos um tempo que é tudo menos “comum”. Estamos a padecer uma pandemia e prestes a iniciar um novo confinamento radical; a economia padece e as pessoas sofrem em termos materiais, psicológicas e espirituais. Ninguém consegue prever o que será o futuro a curto, médio e longo prazo. De facto, quando a aprovação das vacinas parecia assinalar uma nova fase..., surgiram as mutações do vírus e os contágios desmesurados por ocasião das férias natalícias. Não voltamos sequer “à estaca zero”; estamos numa fase ainda pior do que na primeira, como o número de mortes e infeções bem demonstra. Definitivamente, este não é um tempo “comum”.

            Em boa verdade, nenhuma época viveu um tempo comum. Os sobressaltos na história e as crises espaçadas no tempo a nível individual (na psicologia do desenvolvimento de E. Erikson) ou colectivo (tensão dialéctica na filosofia de F. Hegel) são constituintes da dinâmica humana e religiosa. A última grande guerra terminou em 1945, já passaram felizmente 75 anos (o intervalo entre a primeira e a segunda foi de apenas 21 anos...). Houve conflitos permanentes e guerras internacionais e surgiu o fenómeno do terrorismo global. E, quando o Papa Francisco falava de uma “terceira guerra mundial aos pedaços”, surgiu um “inimigo” comum à toda a humanidade que concentrou as atenções e fez parar, literalmente, tudo e todos. Esta é, certamente, a pandemia mais ampla e contagiosa que a humanidade recorda. E esta é, certamente, a primeira pandemia em que os poderes globais da ciência e da política se uniram para lutar juntos e não entre si. Vivemos a pior pandemia da história e vivemos a melhor fase da história para sofrer uma pandemia.

            Neste deserto que estamos a atravessar, a Palavra de Deus e a Comunhão do Corpo e Sangue de Jesus são um bálsamo para as nossas feridas. O povo de Deus na Antiga Aliança sofreu várias epidemias devastadoras. Uma delas terá sido agravada por culpa dos governantes, mormente do rei David, como conta 2 Samuel 24. Sofreu ainda o exílio e o extermínio duma parte significativa da população. Ora precisamente nesse contexto de exílio, o profeta Ezequiel (Ex 10,18-19; 11,22-23) viu “a glória do Senhor” sair do Templo e partir como os exilados, para estar com eles, e voltar apenas quando o povo regressou à sua terra (43,1-2). Este é o nosso Deus, exilado como nós; “infectado” com os nossos vírus, “tomou sobre si as nossas enfermidades; pelas suas chagas fomos curados” (Is 53,4-5).

               Não estamos sós nem ficámos órfãos. As palavras que a voz do Céu proclamou durante o Baptismo de Jesus, ecoam hoje para nós: “Tu és o meu Filho muito amado, em Ti pus toda a minha complacência” (Mc 1,11; cfr. Is 42,1). São João afirma “vede que grande amor o Pai nos consagrou: somos chamados filhos de Deus, e somo-lo, de facto!” (1 Jo 3,1). Não sabemos, deveras, o nosso amanhã, nem sequer o nosso presente. Mas sabemos de quem somos filhos. 

 

P. Pablo Lima

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