Solenidade do Natal do Senhor – A
Missa da Meia-noite
Serreleis, 24 de Dezembro de 2010
Sinto uma enorme alegria por estar a celebrar convosco a noite santa de Natal! Este é o quinto ano que estou convosco e a próxima ocasião em que volta a ocorrer a noite de Natal de sexta para sábado é em 2021. Por isso, disse-vos – e para bom entendedor basta meia palavra – que gostava de celebrar pelo menos uma vez a Missa da meia-noite convosco porque este «pretexto» só volta a ocorrer daqui por 11 anos, altura em que, certamente, não estarei aqui como pároco (hoje em dia, nenhum presbítero permanece tantos anos na mesma comunidade). Por isso, esta noite carrega-se ainda mais do ambiente próprio duma celebração de família. E é à volta da família de Nazaré que hoje nos encontramos.
Iniciámos esta Eucaristia com a igreja submergida numa parcial penumbra e, com esse rito singelo e tão significativo do canto do Precónio de Natal e da colocação da imagem do menino no presépio, acendemos as luzes todas representando assim as palavras da oração Colecta: «Senhor nosso Deus, que fizestes resplandecer esta santíssima noite com o nascimento de Cristo, verdadeira luz do mundo», bem como as palavras de Isaías (9,1): «o povo que andava nas trevas viu uma grande luz, para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar» e, do evangelho, «a glória do Senhor cercou de luz os pastores» (Lc 2,9). E porquê vimos esta luz? É também Isaías (9,5) que nos responde: «um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado».
Eis pois que esta noite estamos reunidos aqui e a esta hora porque houve um parto! Acaba de nascer uma criança e cada vez que nasce uma criança é preciso fazer uma festa, uma grande festa! Notai bem, não apenas «nasceu» mas «acaba de nascer». Esta não é uma noite de festa de anos, esta é a noite do nascimento porque, na liturgia, somos contemporâneos dos acontecimentos da história da salvação. Para nós, o Natal não é um facto do passado que recordamos, é um acontecimento do presente em que participamos! Este é o sentido mais profundo da Eucaristia: não recordamos o nascimento, a ceia, a paixão, morte e ressurreição do Senhor mas adoramos o menino no presépio, sentamo-nos com Ele à mesa, assistimos à sua morte, presenciamos a sua ressurreição! E, por isso, quem falta à Eucaristia, faz que a história de Deus não se manifeste na sua vida mas seja uma lembrança de coisas passadas, quem celebra a Eucaristia testemunha as maravilhas de Deus! Compreendeis então porquê é tão importante estarmos aqui e agora na Eucaristia, porque não seria bom que o Menino nascesse e nós fizéssemos parte de quantos, em Belém, dormiam cansados ou embriagados e não foram capazes de abrir a porta de casa à Sagrada Família peregrina e ainda menos foram capazes de escutar o doce pranto do menino Jesus e o canto divino do exército dos anjos «Glória a Deus nas alturas» (Lc 2,14).
Esta manhã (aliás, ontem, dia 24 de manhã) fiquei chocado com uma oração da Liturgia das Horas, que, na oração de Laudes, dizia assim: «amanhã será apagada a iniquidade da terra». Isto é, amanhã (ou melhor, hoje!) será exterminado todo o mal, todo o rancor, todo o ódio, toda a guerra, todo o pecado e reinará a paz. Mas é isso verdade? Reina hoje a paz em todo o mundo ou houve apenas um intervalo na guerra dos países e dos seres humanos e amanhã regressaremos à faina de nos atacarmos uns aos outros, desceremos outra vez à arena das nossas lutas sangrentas e desumanas?!
A verdade é que Jesus já inaugurou o Reino da Paz. Assim prometia Isaías: «será chamado Príncipe da Paz. O seu poder será engrandecido numa paz sem fim […] para estabelecer e consolidar o direito e a justiça» (9,5-6). Então, aprendia-se antigamente, «Deus não se engana nem pode enganar-nos». Se a Escritura nos diz isto, é porque é mesmo assim. «Mas como será isto?» - recordamos as palavras de Maria ao Anjo (1,34). É preciso deixarmos que a lógica de Deus transforme o nosso pensar e o nosso agir. Regressemos às primeiras palavras do Evangelho desta noite: «naqueles dias, saiu um decreto de César Augusto, para ser recenseada toda a terra» (Lc 2,1). São Lucas coloca aqui esta referência histórica não apenas para nos situar em termos históricos mas também em termos simbólicos/ideológicos pois Augusto considerava-se o pacis auctor e até mandou construir em Roma a Ara Pacis Augustae, Altar da Paz de Augusto[1]. Lucas quer que façamos um contraste entre a paz imposta por Augusto e a paz proposta de Jesus: duas pessoas e duas formas de viver e construir a paz. Augusto significa aqueles que, ainda hoje, julgam apenas através da ciência, da técnica e da inteligência fazer o ser humano feliz.
A proposta de paz de Jesus é diferente, Ele instaura a paz através de uma aparente fraqueza, debilidade e pobreza. E vemos hoje que reino verdadeiramente subsistiu: o de Roma ou o de Jesus? Porque a paz que Jesus trouxe é a paz do coração; onde quer que o homem quer impor a paz, só traz a guerra. Onde quer que Jesus é aceite, mesmo no meio da violência, nasce a paz.
Pensai bem nas palavras com que termina o evangelho de hoje e que o «exército celeste» cantava e canta: «paz aos homens por Ele amados». Aos que se deixam amar por Deus e amam ao seu jeito, chega a paz. Então, sim, hoje morreu de uma vez e para sempre a iniquidade e foi instaurado o Império da Paz que começou em Jesus. Reparai bem: começou mas não chegou à plenitude. Tudo o que de mais belo e forte podia Deus fazer pela humanidade já o fez: deu-nos o seu Filho Unigénito: «um filho nos foi dado». A nós compete abraçar este menino e deixar-nos amar por Ele para que a paz reine em nossos corações, em nossas famílias, em nossa comunidade e transforme definitivamente a face da terra. Esta paz só alcançará a plenitude quando Jesus vier de novo, na sua glória. Até lá, manda-nos São Pedro, nosso padroeiro: «considerai qual deve ser a santidade da vossa vida e de vossa piedade, enquanto esperais e apressais o dia de Deus» (2 Pe 3,12).
[1] Ainda hoje subsiste esse mesmo monumento (ainda que transladado tematicamente e reconstruído frente ao Mausoléu de Augusto), dedicado à deusa Pax por Caio Júlio César Otaviano Augusto na condição de Pontifex Maximus, em 9 a.C., e pelos romanos que quiseram assim homenagear a chamada pax romana alcançada pelas expedições militares de Augusto. Para celebrar a vitória sobre Sexto Pompeio, fez erugir uma estátua, que está representada num denário de Octaviano antes de 31, em que se dizia na base da coluna: «restaurou na terra e no mar a paz, há muito tempo perturbada» [In Apiano, BC 5, 130; ciit. Paulo F. Alberto, O simbólico na construção da imagem e do programa ideológico de Augusto. In Ágora. Estudos Clássicos em Debate 6 (2004)]. No início das Geórgicas, Vergílio apoda Augusto de auctor frugum (1, 27) e, no Epodo 16, Horácio clamará (4, 15, 4-5): «a tua geração, César, trouxe de volta as searas e os férteis campos».
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