quinta-feira, 7 de junho de 2012

Silêncio e anúncio


 “Anunciai sempre o evangelho; se necessário, usai palavras”

 
          
            A expressão é atribuída a São Francisco de Assis. E se é certo que nunca a disse[1], espelha bem o seu pensamento. Muitas vezes, o silêncio acompanhado das obras, é bem mais eloquente que muitos discursos. Paulo VI escreveu que «o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou, então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas»[2]. Não é raro dizer-se que «as palavras convencem mas o exemplo arrasta».
            Vivemos numa sociedade do ruído. Na rua, é o ruído dos carros; no carro, é o ruído da rádio; em casa, é o ruído da televisão… Esta paixão pelo ruído transforma-se numa fobia do silêncio: é preciso dizer sempre qualquer coisa para «não ficar calados», é preciso ouvir sempre qualquer coisa no ipod para não «perder o tempo». E, no entanto, o silêncio é o terreno onde a palavra é gerada e se desenvolve. Ou, talvez, ao contrário, a palavra só serve para fecundar o silêncio. Um provérbio árabe diz «fala apenas se tiveres algo a dizer mais belo do que o silêncio».
            Bento XVI, recorda-nos «o valor do silêncio para a recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis. De facto, a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no silêncio, exterior e interior»[3]. De forma paradoxal, deu como título e conteúdo à sua Mensagem deste ano para o Dia das Comunicações Sociais, «Silêncio e palavra: caminho de evangelização».
            É habitual recordar-se a tese de Wittgenstein: «Quanto se pode dizer, deve dizer-se claramente […] sobre aquilo de que não se pode falar, há que estar calado»[4]. Estas teses wittgensteinianas (mais desenvolvidas na sua obra Investigações filosóficas) são produto da sua reflexão sobre a filosofia da linguagem de Santo Agostinho. Num belíssimo texto, santo Agostinho escreveu «inefável é aquilo que não se pode exprimir; ora se não se pode exprimir mas também não se pode calar, o que fica senão o júbilo, a alegria do coração sem palavras e a interminável amplitude da alegria que não conhece o limite das sílabas?»[5]. Noutra obra, escreveu ainda o bispo de Hipona: «Deus é inefável, mas poderia ter dito isto que disse se fosse inefável? Neste sentido, não se deve chamar a Deus nem inefável porque, ao dizê-lo, já se diz alguma coisa. Ora daí resulta uma certa contradição nos termos, pois se é certo que é inefável aquilo que não se pode dizer, não o é na medida em que se pode dizê-lo. Tal contradição evite-se com o silêncio, mais do que tentar resolvê-la com o discurso»[6].
            Por sua vez, santo Inácio de Antioquia tinha escrito: «é melhor calar e ser, do que falar e não ser. É bom ensinar, se aquele que fala, faz. De facto, há um único mestre, aquele que disse e era. E o que ele fez, calando, são coisas dignas do Pai. Aquele que possui verdadeiramente a palavra de Jesus pode escutar também seu silêncio, a fim de ser perfeito, para realizar o que diz ou para ser conhecido pelo seu silêncio»[7].
            No evangelho de São João (1,1), o Deus feito homem, feito carne, é apresentado como o Lógos, o Verbo. Ora, Santo Agostinho, num belíssimo jogo de palavras em latim, diz que quanto mais a Palavra, isto é, Jesus Cristo, cresce (em nós), mais as palavras devem diminuir e definham, pois tornam-se fúteis: «Verbo crescente, verba deficiunt»[8].
            Quanto seja importante o silêncio para a vida cristã, para a oração e o anúncio, homens da estatura espiritual de São Bento e Santo Agostinho, deixaram-nos incontáveis testemunhos. Para o primeiro, o silêncio é uma atitude interior que, na escala dos doze graus de humildade, ocupa o altíssimo nono lugar[9]. Num dos seus sermões, santo Agostinho pede, logo na abertura, o silêncio do auditório, não apenas como atitude passiva de quem não fala mas como atitude activa de quem recebe e acolhe com delicadeza: «ajudai-me com o vosso silêncio; preparai em vós um ninho para o nosso discurso pois também na Escritura, de facto, apresenta-se-nos uma pomba à procura de um ninho onde depor os seus pichõezinhos»[10]. Noutra obra, chegou mesmo a afirmar: «Não há necessidade, na oração, da linguagem isto é, de palavras que soam»[11].
            Basta, pois, de tantas linhas que são palavras. Deixemos lugar ao silêncio que, na sua etimologia latina, significa, em primeiro lugar, estar quieto. Alguns filólogos arriscam a associar a palavra à raiz indo-europeia sei, que significa semear…
            Ora a versão hebraica e original do Salmo 65, 2 (a edição grega dos LXX, a Vulgata e a tradução litúrgica portuguesa colocam um jurídico e odioso «a vós é devido»), diz assim: «para ti, ó Deus, uma oração, um silêncio em Sião»…
A vós, Senhor, pertence a palavra; a nós, o silêncio.

p.pablo de lima
07.VI.2012


[1] A expressão começou a surgir em meados do século passado para resumir um tema muito caro ao pobre de Assis e que, esse sim, está muito presente nos seus escritos: a pregação pelo exemplo. O texto que mais se aproxima desta nota franciscana é talvez o da Regra I, 17,3, a respeito de como devem comportar-se os pregadores, onde faz esta afirmação geral: «mas, com as obras, todos os irmãos devem pregar». Na Legenda dos três companheiros 36,2, pode ler-se esta afirmação sua: «consideremos a nossa vocação […] vamos pelo mundo e, com o nosso exemplo mais que com as palavras, exortemos os homens a fazerem penitência de seus pecados e a lembrarem-se dos mandamentos divinos» e, finalmente, na Legenda Perusiana, 115, a respeito da sugestão de alguns frades de pedir recomendações públicas ao Papa para os bispos os aceitarem melhor e concederem licença para pregar, respondeu: «Quanto a mim, este privilégio quero ter eu do Senhor: não ter privilégio algum vindo dos homens, a não ser o de para com todos ser reverente e, pela obediência à Santa Regra, mais pelo exemplo do que pela palavra, a todos converter».
[2] Paulo VI, Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, 41.
[3] Bento XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, 66,
[4] L. Wittgenstein, Tractatus Logicus-Philosophicus, 4, 116 e 7.
[5] Santo Agostinho, Enarr. in Psalmus XXXII,2,1,8.
[6] Santo Agostinho, La doctrina cristiana I, 2, 6.
[7] Santo Inácio de Antioquia, Ad Ephesios XV, 2
[8] Santo Agostinho, Sermo 288, 5; Sermo 120, 2.
[9] São Bento, Regula VII, 56: «O nono grau da humildade consiste em que o monge negue o falar a sua língua, entregando-se ao silêncio».
[10] Santo Agostinho, Sermo 37,1.
[11] Santo Agostinho, De Magistro I,2.

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