“Anunciai sempre o evangelho; se necessário,
usai palavras”
A expressão é atribuída a
São Francisco de Assis. E se é certo que nunca a disse[1], espelha
bem o seu pensamento. Muitas vezes, o silêncio acompanhado das obras, é bem
mais eloquente que muitos discursos. Paulo VI escreveu que «o homem
contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres,
ou, então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas»[2]. Não é
raro dizer-se que «as palavras convencem mas o exemplo arrasta».
Vivemos numa sociedade do
ruído. Na rua, é o ruído dos carros; no carro, é o ruído da rádio; em casa, é o
ruído da televisão… Esta paixão pelo ruído transforma-se numa fobia do
silêncio: é preciso dizer sempre qualquer coisa para «não ficar calados», é
preciso ouvir sempre qualquer coisa no ipod para não «perder o tempo». E, no
entanto, o silêncio é o terreno onde a palavra é gerada e se desenvolve. Ou, talvez, ao contrário, a palavra só
serve para fecundar o silêncio. Um provérbio árabe diz «fala apenas se
tiveres algo a dizer mais belo do que o silêncio».
Bento XVI, recorda-nos «o
valor do silêncio para a recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis. De
facto, a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no silêncio, exterior e
interior»[3]. De
forma paradoxal, deu como título e conteúdo à sua Mensagem deste ano para o Dia das Comunicações Sociais, «Silêncio e palavra: caminho de
evangelização».
É habitual recordar-se a tese de
Wittgenstein: «Quanto se pode dizer, deve dizer-se claramente […] sobre aquilo
de que não se pode falar, há que estar calado»[4].
Estas teses wittgensteinianas (mais desenvolvidas na sua obra Investigações
filosóficas) são produto da sua reflexão sobre a filosofia da linguagem de
Santo Agostinho. Num belíssimo texto, santo Agostinho escreveu «inefável
é aquilo que não se pode exprimir; ora se não se pode exprimir mas também não se
pode calar, o que fica senão o júbilo, a alegria do coração sem palavras e a
interminável amplitude da alegria que não conhece o limite das sílabas?»[5].
Noutra obra, escreveu ainda o bispo de Hipona: «Deus é inefável, mas poderia
ter dito isto que disse se fosse inefável? Neste sentido, não se deve chamar a
Deus nem inefável porque, ao dizê-lo, já se diz alguma coisa. Ora daí resulta
uma certa contradição nos termos, pois se é certo que é inefável aquilo que não
se pode dizer, não o é na medida em que se pode dizê-lo. Tal contradição
evite-se com o silêncio, mais do que tentar resolvê-la com o discurso»[6].
Por sua vez, santo Inácio de
Antioquia tinha escrito: «é
melhor calar e ser, do que falar e não ser. É bom ensinar, se aquele que fala,
faz. De facto, há um único mestre, aquele que disse e era. E o que ele fez,
calando, são coisas dignas do Pai. Aquele que possui verdadeiramente a palavra
de Jesus pode escutar também seu silêncio, a fim de ser perfeito, para realizar
o que diz ou para ser conhecido pelo seu silêncio»[7].
No evangelho de São João (1,1),
o Deus feito homem, feito carne, é apresentado como o Lógos, o Verbo. Ora, Santo Agostinho, num belíssimo jogo de
palavras em latim, diz que quanto mais a Palavra,
isto é, Jesus Cristo, cresce (em nós), mais as
palavras devem diminuir e definham, pois tornam-se fúteis: «Verbo
crescente, verba deficiunt»[8].
Quanto
seja importante o silêncio para a vida cristã, para a oração e o anúncio,
homens da estatura espiritual de São Bento e Santo Agostinho, deixaram-nos
incontáveis testemunhos. Para o primeiro, o silêncio é uma atitude interior
que, na escala dos doze graus de humildade, ocupa o altíssimo nono lugar[9].
Num dos seus sermões, santo Agostinho pede, logo na abertura, o silêncio do
auditório, não apenas como atitude passiva de quem não fala mas como atitude
activa de quem recebe e acolhe com delicadeza: «ajudai-me com o vosso silêncio; preparai em vós um ninho
para o nosso discurso pois também na Escritura, de facto, apresenta-se-nos uma
pomba à procura de um ninho onde depor os seus pichõezinhos»[10]. Noutra
obra, chegou mesmo a afirmar: «Não há necessidade, na oração, da linguagem isto
é, de palavras que soam»[11].
Basta,
pois, de tantas linhas que são palavras. Deixemos lugar ao silêncio que, na sua
etimologia latina, significa, em primeiro lugar, estar quieto. Alguns filólogos
arriscam a associar a palavra à raiz indo-europeia sei, que significa
semear…
Ora
a versão hebraica e original do Salmo 65, 2 (a edição grega dos LXX, a Vulgata
e a tradução litúrgica portuguesa colocam um jurídico e odioso «a vós é
devido»), diz assim: «para ti, ó Deus, uma oração, um silêncio em Sião»…
A vós, Senhor, pertence a
palavra; a nós, o silêncio.
p.pablo de lima
07.VI.2012
[1] A expressão começou a surgir em meados do século passado
para resumir um tema muito caro ao pobre de Assis e que, esse sim, está muito
presente nos seus escritos: a pregação pelo exemplo. O texto que
mais se aproxima desta nota franciscana é talvez o da Regra I, 17,3, a respeito de como devem comportar-se os pregadores, onde faz esta
afirmação geral: «mas, com as obras, todos os irmãos devem
pregar». Na Legenda dos três companheiros
36,2, pode ler-se esta afirmação sua: «consideremos a nossa vocação […] vamos
pelo mundo e, com o nosso exemplo mais que com as palavras, exortemos os
homens a fazerem penitência de seus pecados e a lembrarem-se dos mandamentos
divinos» e, finalmente, na Legenda
Perusiana, 115, a respeito da sugestão de alguns frades de pedir recomendações
públicas ao Papa para os bispos os aceitarem melhor e concederem licença para
pregar, respondeu: «Quanto a mim, este privilégio quero ter eu do Senhor: não
ter privilégio algum vindo dos homens, a não ser o de para com todos ser
reverente e, pela obediência à Santa Regra, mais pelo exemplo do que pela
palavra, a todos converter».
[2] Paulo VI, Exortação
apostólica Evangelii Nuntiandi, 41.
[3] Bento XVI, Exortação
apostólica pós-sinodal Verbum Domini, 66,
[4] L. Wittgenstein, Tractatus Logicus-Philosophicus,
4, 116 e 7.
[5] Santo Agostinho, Enarr. in Psalmus XXXII,2,1,8.
[7] Santo Inácio de Antioquia,
Ad Ephesios XV, 2
[8] Santo
Agostinho, Sermo 288, 5; Sermo 120, 2.
[9] São Bento, Regula VII, 56: «O
nono grau da humildade consiste em que o monge negue o falar a sua língua,
entregando-se ao silêncio».

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