I
Quaresma – B
22 de
Fevereiro de 2015
Todos os anos o primeiro Domingo
da Quaresma é chamado «das tentações» porque apresenta um trecho do Evangelho
sobre os 40 dias de Jesus no deserto. O número 40, bem o sabemos, é simbólico:
podem ter sido mais ou menos dias. O que realmente interessa é que Jesus
reassume a história do povo de Israel nos seus 40 anos de deserto e a
preparação cumprida para a sua missão ao jeito das grandes figuras do Antigo
Testamento (Moisés - Ex 24,18 - e Elias – 1
Re 19,8 - estiveram 40 dias no Sinai-Horeb e até o dilúvio, segundo a versão
hoje proclamada na primeira leitura - Gn 7,4.12.17-, foi de 40
dias).
Jesus, escreve são Marcos, é
«impelido ao deserto pelo Espírito Santo» (Mc 1,12). Enquanto Mateus (4,1) diz
mesmo que o Espírito o conduziu ao deserto «para ser tentado»,
Marcos e Lucas (4,1) apenas dizem que, «no deserto era tentado», isto é, a
tentação não é vontade do Espírito. Enquanto Marcos e Lucas relatam o conteúdo
programático das três tentações e precisam que foi no termo dos 40 dias que
sofreu as tentações, Marcos não entra em tais pormenores – aliás o seu relato é
o mais sóbrio dos três e em dois versículos encerra o assunto que em Mt e Lc
ocupam 11 e 13 versículos, respectivamente – e o verbo que utiliza (um
particípio presente passivo, “sendo tentado”) refere-se não a um único
momento mas a uma condição continuada… Jesus, não foi tentado apenas no
deserto, uma ou três vezes, assim como a tentação não é para nós um facto
esporádico mas antes uma condição de vida. E a tentação raramente é uma
«provocação» divina; é acima de tudo uma consequência da condição humana.
Finalmente, Marcos possui um
versículo de grande beleza literária e eloquência humana e teológica: Jesus
«vivia com os animais selvagens e os Anjos serviam-n’O». É por causa deste
versículo que, no tetraformo (ou representação simbólica dos quatro evangelistas
com traços/cabeças de animais e um humano), coube a São Marcos a figura do leão
– o rei do deserto e dos animais selvagens, figura também do Leão da tribo de
Judá (Gn 49,9; Ap 5,5) que é o próprio Jesus (também o leão Aslam das Crónicas
de Nárnia de C.S.Lewis é uma figura tipológica inspirada em Cristo, de acordo
com o pensamento do novelista anglicano). O que significa esta convivência
entre bestas e anjos? Não é essa porventura uma metáfora completa da existência
humana? O convívio com os anjos representa a presença e intimidade com Deus; a
convivência com os animais selvagens refere-se ao ambiente e às relações hostis
que enfrentamos ou estabelecemos no quotidiano. Uma e outra realidade não se
excluem e não se anulam automaticamente – mesmo se o seu claro antagonismo
tanto o exige e nós tanto o desejamos. Mais ainda, anjos e bestas
não são (só e principalmente) os outros. J.P. Sartre diria «o inferno são os
outros» mas… e nós? Não somos inferno em nós mesmos, para nós e para os outros?
Anjo e besta é cada um de nós, capaz do melhor e do pior. A
verdadeira questão é quem levará a vencida? A nossa existência é per se agónica e bélica mas isso não
significa que não possa estar envolvida em Deus. Nós continuamos a escrever a
Bíblia e os evangelhos em nossa carne.
Escreveu Primo Levi, judeu
italiano sobrevivente do campo de concentração de Buna-Auschwitz: «Resnyk é
polaco. Contou-me a sua história, que hoje já esqueci, mas era certamente uma
história dolorosa, cruel e comovente: pois que assim são todas as nossa
histórias, centenas de milhares de histórias, todas diferentes e todas cheias
de uma trágica e surpreendente necessidade. Contámo-las uns aos outros à noite;
aconteceram na Noruega, na Itália, na Argélia, na Ucrânia, e são simples e
incompreensíveis como as histórias da Bíblia. E não são, elas próprias,
histórias de uma nova Bíblia?» (Primo Levi, Se
isto é um homem, p. 70).
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