Na véspera de Natal de 1975, em Gales, um homem sem-abrigo bateu à porta de um antigo colega da escola primária e da catequese. Foi convidado a entrar por um momento... e lá ficou 45 anos. Com ele trazia apenas um frango congelado num saco plástico – a oferta de alguma alma caridosa – e um passado de maus-tratos em casas e instituições de acolhimento.
Assim começa a história inacreditável, mas real e comovente de Ronnie Lockwood, um órfão e adulto abandonado e, depois, acolhido por Rob Parsons e sua esposa Dianne, narrado no livro “Bateram à porta. Um sem-abrigo, um advogado... e uma família transformada para sempre”[1].
Como o próprio autor reconhece no fim do livro, a sua experiência não é repetível e, talvez, nem seja desejável. Mas esta história real e o testemunho autobiográfico da família é um poço de humanismo e sabedoria que merecem ser considerados atentamente.
Em primeiro lugar, o casal Parsons decidiu aceitar e abraçar o “transtorno” de ter uma pessoa alheia, um sem-abrigo, a viver com eles. Não foram forçados, tiveram muitas oportunidades de arranjar uma habitação alternativa para Ronnie. No entanto, decidiram ficar com ele porque não queriam somar mais um abandono a tantos já sofridos no passado por aquele a quem decidiram receber a abraçar como um dos seus. Esse novo membro da família foi transformado por eles, mas também os transformou. Cada um descobriu no outro uma bênção enviada por Deus e aprendeu a dizer em voz alta “eu amo-te muito”. Os filhos e netos encontraram naquele sem-abrigo mais do que um tio e um avô e ele encontrou neles o lar que nunca teve quando criança.
Em segundo lugar, o livro mostra como gestos gratuitos de ternura e simpatia (sobretudo a desconhecidos) podem ter um poder transformador, especialmente para quem viveu um passado de desprezo e sofrimento. Muitas pessoas deixaram profundas marcas no “sem-abrigo abrigado” quando lhe sorriram, quando o felicitaram, quando o abraçaram ou lhe confiaram pequenas tarefas nos lares, na paróquia, no centro de voluntariado. Ronnie tinha dificuldades cognitivas e sofreu maus-tratos físicos e psicológicos na infância e juventude, mas a experiência do amor e do carinho ofereceram-lhe uma segunda oportunidade. Foi uma criança até aos 75 anos, quando morreu (a idade média de morte dos sem-abrigo ronda os 45 anos...), mas morreu como uma criança amada.
Ronnie também tocou a vida de muitos e a sua experiência levou o casal Parsons a fundar uma instituição social, “Care for the Family”, para prestar apoio a pessoas nas mais variadas situações de internamento institucional, solidão ou sofrimento. Uma das mensagens mais marcantes do livro é que ninguém está livre de sofrer uma reviravolta dramática que o leve a acabar sozinho e na rua. Como dizia o Papa Francisco ao visitar pessoas que sofreram traumas de todo o tipo, “muitas vezes penso... porquê eles e não eu?!”.
O testemunho de Rob Parson é discreto no que diz respeito à fé, mas não deixa de mencionar como todos os Domingos ia à Igreja com a família e com o Ronnie e como o seu catequista de infância e um dos voluntários da sua paróquia foram as pessoas que mais marcaram a sua vida e mais o ajudaram. Não esconde como a fé motivou as suas opções de entrega aos outros e cita longamente o texto bíblico de Mt 25: “tive fome e deste-me de comer... estava na rua e acolheste-me”. Ao mesmo tempo, desabafa a sua desilusão com pessoas muito piadosas da Igreja, mas causticamente críticas e incapazes de aceitar e ajudar outros com problemas de saúde mental, sobretudo de depressão.
O livro acaba com uma nota triste, mas consoladora. Ronnie faleceu de uma trombose, após dois meses de internamento e durante a pandemia. Por causa das restrições sanitárias, o casal Parsons pôde visitá-lo apenas uma vez e, depois, acompanhá-lo na noite da sua partida. Rob descreve o seu arrependimento por não ter podido corresponder ao seu último pedido e às suas últimas palavras “Leva-me para casa”. Têm consciência de que, ao longo dos anos, muitas reacções deveriam ter sido diferentes, muitas coisas ficaram por fazer e muitas palavras por dizer. “A morte deveria dar mais avisos” – desabafa. Mas acima de tudo, termina com a gratidão por não ter fechado a porta naquela noite de Natal.
E se nos batessem à porta numa noite de Natal...?
P. Pablo de Lima,
02.VI.2025.
[1] “A Knock at the Door: A homeless man, a lawyer . . . and a family changed forever”, Rob Parsons, Williams Collins Pub, 2024.