domingo, 5 de dezembro de 2021

Terraplanagem e Saudades - II Domingo do Advento

05 de Dezembro de 2021

Bar 5, 1-9; Sal 125 (126); Flp 1, 4-6.8-11; Lc 3, 1-6



            O Advento é o tempo litúrgico mais curto do ano. Raramente chega a ter quatro semanas completas e passam tão depressa! Os dias parecem ser mais curtos do que a duração das velas na coroa... Quando finalmente prestamos atenção, damos conta que o Natal é já nessa semana! Talvez por isso o rito ambrosiano (Milão e arredores) conta seis semanas de Advento à semelhança da Quaresma. Durante vários anos, costumava fazer retiro espiritual naquela região em fins de Novembro e celebrava aí o primeiro Domingo de Advento. Quando finalmente regressava a Portugal... voltava à primeira semana 

            Normalmente é o terceiro Domingo que é chamado “Gaudete” ou “da alegria” (lit. “alegrai-vos”), mas a liturgia deste Domingo é já uma exortação ao júbilo. O profeta Baruc dirige-se ao povo, personificado na cidade santa, como quem fala a uma mulher: “Jerusalém (...) veste-te com a beleza da glória de Deus (...) cobre-te com justiça, o diadema da glória... o teu esplendor... paz... glória... piedade... vê os teus filhos reunidos... felizes... em triunfo... Deus conduzirá Israel na alegria... com a misericórdia e a justiça”. Baruc foi secretário de Jeremias antes da destruição de Jerusalém (Jer 36,4-32), mas, tendo sido capturado, foi também exilado para a Babilónia. Nessa circunstância tão dolorosa, proferiu as palavras grávidas de entusiasmo e esperança que escutamos hoje. Na escuridão da noite e da tragédia, o profeta anuncia que Deus não abandona o Seu povo e, por isso, pode renascer a alegria.

            Parte da profecia de Baruc (5,7) ecoa a profecia de Isaías (40,4) que Lucas (3,5) também cita no evangelho de hoje: “Deus decidiu abater todos os altos montes e as colinas seculares e encher os vales, para se aplanar a terra”. O protagonista desta terraplanagem é João Baptista (Lc 3,2). João tem um pé na Antiga Aliança (ou Antigo Testamento) e o outro pé na Nova Aliança. A sua mensagem, o seu estilo, a sua palavra replicam as grandes personagens do passado como Moisés e Elias e, graças a ele, o espírito de profecia acorda novamente em Israel. Mas João é também aquele que abre a porta ao Messias, que olha para a frente, para o futuro e “prepara o caminho para o Senhor”.

            Lucas parece obcecado em dar-nos pormenores do contexto político, religioso, familiar e geográfico no qual “foi dirigida a palavra de Deus a João”: “no décimo quinto ano do imperador Tibério, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes tetrarca da Galileia (...), no pontificado de Anás e Caifás (...) a João, filho de Zacarias, no deserto (...) em toda a zona do rio Jordão”. O evangelista quer deixar bem claro que a Palavra de Deus encarna verdadeiramente na realidade, no tempo presente, no “aqui e agora” de Deus e do ser humano. Nunca é demais insistir nisto. Porque a tentação de todas as religiões e de todos os crentes é focar-se no folclore do passado e numa ideologia da tradição que se fixa nos pormenores exteriores e esquece o essencial da Palavra e da Caridade. Aquilo que por vezes se chama “tradição” não era mais do que o tempo “presente” dos outros no passado. Mas é mais fácil abraçar a repetição do passado do que a responsabilidade e a canseira de viver o evangelho no mundo de hoje e pregá-lo com linguagem deste tempo.

            A exortação do Profeta do Deserto é que abatamos “os montes e as colinas” do nosso orgulho e auto-suficiência”; que alteemos “os vales” da tristeza e da depressão que nos tentam no deserto; que endireitemos “os caminhos tortuosos” da mentira, da falsidade e dissimulação com que pactuamos. Por outras palavras, que façamos na nossa vida, nas nossas famílias e comunidades, na nossa sociedade e na Igreja um trabalho de terraplanagem das “veredas escarpadas”, para caminhar sem atropelos e acidentes ao encontro do Senhor e dos irmãos. Assim, poderemos experimentar a “remissão dos pecados” e “toda a criatura verá a salvação de Deus”.

            A epístola aos Filipenses é uma das cartas do cativeiro, que Paulo escreveu na prisão. A abertura que hoje lemos é comovente, ainda que a tradução litúrgica não destaque claramente os sentimentos do apóstolo. Alertando os cristãos para o “Dia de Cristo”, exortando-os a um amor fraterno sempre crescente, afirma que, ao recordar-se deles, “reza com alegria”. Em seguida, desavergonhadamente abre o coração e diz: “Deus é testemunha de que tenho saudades de todos vós, nas entranhas de Cristo Jesus” (Flp 1,8). O Advento, tempo de preparação para o “Dia de Cristo”, o Natal, é tempo de saudade e gratidão. Olhamos para trás e reconhecemos quanto temos para agradecer e sentimos, mais do que noutros momentos do ano, a saudade daqueles que nos deixaram. O tempo é breve, aproxima-se a hora do reencontro. Vamos...?!

 

P. Pablo Lima

 

 

 

domingo, 28 de novembro de 2021

Levantar a cabeça - I Domingo do Advento

28 de Novembro de 2021

Jer 33, 14-16; Sal 24 (25); 1 Tes 3,12–4, 2; Lc 21, 25-28. 34-36

 

            Nos últimos dias, fomos surpreendidos com uma insultuosa recomendação de um membro do governo que sugeria aos profissionais da saúde maior “resiliência”. É sempre fácil “receitar resiliência” a quem se encontra no terreno a partir de um gabinete ou conferência de imprensa... Neste momento em que, pelo terceiro ano consecutivo, parece que viveremos um novo Advento e Natal com a sombra de uma nova variante do covid19, aquilo que mais precisamos é de quem nos ajude a levantar a cabeça, não a baixá-la.

            O trecho evangélico deste Domingo é surpreendente e provocou as reacções mais estranhas ao longo dos séculos. Por causa desta pregação apocalíptica de Jesus, muitos milhares de cristãos convenceram-se que o fim do fundo estava ao virar da esquina. Obviamente, enganaram-se. Ou melhor, acertaram em que era o fim “de um mundo”, não “do mundo”. Só no século passado e bem perto de nós, o fim do mundo foi agendado para 1914, 1941 e 1975 (testemunhas de Jeová, e outros) e foram numerosos os suicídios em massa (sobretudo nos USA) perto do ano 2000. Os discursos escatológicos (isto é, sobre as “últimas realidades” ou tempos) de Jesus têm vários níveis de leitura. Em primeiro lugar, Jesus falava do carácter frágil e transitório de toda vida humana: a morte individual (Mt 25,13-30). Em segundo lugar, aludia à iminente destruição de Jerusalém e do Templo, ressalvando que “ainda não será o fim (Mc 13,1-7). Finalmente, Jesus referia-se ao seu regresso no fim dos tempos, a propósito do qual “só o Pai conhece o dia e a hora” (Mc 13,32). Na sua forma actual, estes discursos e estes níveis encontram-se misturados nos evangelhos e, por isso, podem provocar ansiedade e consternação e propiciar interpretações erróneas.

            Não é por acaso que o texto mais antigo do Novo Testamento e anterior aos mesmos evangelhos – a primeira carta aos Tessalonicenses – lidava já com estas questões. São Paulo sentiu a necessidade de exortar os crentes a não baixar os braços porque nem o regresso de Jesus era iminente nem o desânimo ou a preguiça eram atitudes condizentes com a expectativa. Por isso, escreve “o Senhor vos faça crescer e abundar na caridade fraterna... deveis progredir ainda mais”. Só desta forma o Senhor vos confirmará “numa santidade irrepreensível no dia da vinda de Jesus, Nosso Senhor, com todos os santos” (3,12).

            Jesus inaugurou o Reino de Deus com a Sua Vida e Palavra, com a Sua morte e ressurreição. Mas não o consumou. O Reino está ainda em construção e, enquanto vemos sinais da Sua Presença em tantas vidas e realidades deste mundo, um olhar sincero e pragmático também nos assegura que o cumprimento das profecias está ainda longe de se ter realizado. Curiosamente, no evangelho de hoje foram retirados dois versículos com a parábola da figueira (Lc 21,29-30) nos quais Jesus afirma que “quando começa a deitar rebentos, sabeis que o verão está próximo”. Um desses rebentos, conforme aparece na primeira leitura (Jer 33,16) é o exercício da justiça sobre a terra. Nesses dias, Jerusalém será chamada “O Senhor é a nossa justiça” (Jer 33,16), isto é, será um lugar de equidade e paz. Se assim deve ser, então, falta ainda muito para a Parusia (manifestação gloriosa) de Cristo.

            Entretanto, como filhos de Deus, vivemos numa esperança criativa e audaz e não baixamos os braços. Ao anunciar cataclismos, Jesus não convida ao pavor. Pelo contrário, encoraja e exorta dizendo: “erguei-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”. Mas adverte “tende cuidado para que os vossos corações não se tornem pesados pela intemperança, a embriaguez e as preocupações”. Por isso, rezamos no Salmo 24: “para ti, Senhor, levanto a minha alma”.

            Ao aproximar-se a celebração do Natal, no meio dos desafios e riscos do nosso tempo, com o olhar fixo em Jesus, levantemos a cabeça e avancemos com coragem e determinação. Vivamos cada dia com gratidão e entusiasmo. E ouçamos as palavras de Cristo: “Tende coragem, eu venci o mundo” (Jo 16,33).


P. Pablo Lima

 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Quando olho para os outros...

(Mosaico de M.I.Rupnik, Basílica da Ssma. Trindade, Fátima)

 Quando olho para os outros… todos santos e pecadores!

Solenidade de Todos os Santos 2021 

Há alguns anos, perguntaram a um bispo como se sentia, a propósito dos difíceis problemas que estava a enfrentar na sua diocese. O bispo respondeu: “quando olho para a minha situação, digo ‘Kyrie, eleison… Senhor, tende piedade!’, mas… quando olho para os outros digo ‘Deo gratias! Graças a Deus!’ ”. 😁Obviamente, estava não só a justificar-se, mas a desviar a atenção de si para os outros; uma racionalização que todos nós fazemos frequentemente para nos consolarmos. A resposta tornou-se mais ou menos um cliché em certos meios e, de vez em quando, alguns ainda começam a frase... “quando olho para mim... Kyrie, eleison... mas quando olho para os outros...”. Nem é preciso completar. 😁

          Curiosamente, quando estava a preparar a homilia de hoje, esta frase veio-me à memória, mas com um sentido completamente contrário. De facto, é mesmo assim que me sinto ao meditar na Solenidade de Todos os Santos. Quando olho para mim, meus pecados, as minhas misérias, as minhas falhas na hora de ser um bom cristão e um bom padre, sinceramente, rezo Kyrie, eleison! Mas quando olho para as maravilhas que Deus fez e continuar a fazer em homens e mulheres de todo tempo e lugar, através da sua obediência à Palavra de Jesus, digo cheio de alegria Deo gratias!

Em certa medida, quem me dera que estivéssemos já nos tempos apocalípticos. Quando digo “apocalípticos”, não me refiro aos programas de tv que apresentam cataclismos climáticos ou invasões de zombies. Refiro-me ao significado original da palavra “apocalypsis” que dá nome ao último livro do Novo Testamento que hoje foi proclamado na primeira leitura (7,2-4.9-14). Apocalypse, em grego, significa revelação. E a revelação que este livro faz é sobre a transformação final da Humanidade e do Universo em harmonia com Deus. As series de tv apresentam como o “estado final” da história um estado caótico de violência, doença e morte. A Bíblia, pelo contrário, apresenta como estado final da história uma era de paz, amor, e vida sem fim. E é esse tempo apocalíptico que eu desejo!

João, ou o autor do livro do Apocalipse, fala-nos de uma multidão de 144.000 servos de Deus “com o selo na fronte”. O número é claramente simbólico (ao contrário do que algumas seitas cristãs defendem): significa as Doze tribos de Israel, o povo da Antiga Aliança, multiplicado pelos Doze Apóstolos, o povo da Nova Aliança, multiplicado por mil, sinal de grandeza. A continuação, João apresenta uma outra “multidão imensa, que ninguém pode contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão”. Quando abrimos o “Martirológio romano”, o catálogo litúrgico dos santos e mártires que são recordados em cada dia do ano, podemos contar milhares e milhares de pessoas. Em alguns dias, celebramos mesmo centenas de mártires numa só memória, muitos deles vítimas das revoluções do século XX. Mas, se acrescentarmos os membros das nossas famílias, nossos amigos, e todos aqueles e aquelas que não conhecemos, de todos os séculos antes de nós e todos os lugares do mundo, “cuja fé só Deus conheceu” (como rezaremos no Cânone Romano), aqueles e aquelas que não têm imagens nos altares das igrejas, mas têm um lugar especialíssimo no coração de Deus, então, podemos ter, pelo menos, uma pálida ideia de quão grande é esta multidão.

Aquilo que os fez santos não foi fazer milagres durante ou depois da sua vida. Nem sequer foi a canonização, porque esta só confere pública veneração e reconhecimento. Aquilo que os fez santos foi seguir os passos de Jesus, conforme as Bem-aventuranças. Gosto muito da tradução inglesa que começa “Como são felizes...!”. “Bem-aventurados” é um termo teológico muito rico, mas como ser “felizes” é aquilo que os manuais de auto-ajuda dos supermercados e livrarias tentam ensinar sem conseguir, enquanto muitos ainda pensam que a Igreja é “triste” e faz pessoas “frustradas”. Mas, na verdade, “felizes!!! são os pobres em espírito, os mansos, os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, os perseguidos pelo Reino de Deus” (Mt 5). Eu estou muito longe de tudo isto, não sou nada que se lhe pareça. No entanto, sou feliz porque conheço gente que é mesmo assim. Conheci e conheço (tanto quanto é possível saber humanamente) homens e mulheres que foram e são santos, sem auréolas à volta da cabeça e mãos-postas. E tenho a certeza de que não só me encorajam, mas dão-me um exemplo, intercedem e rezam por mim.

Por isso, a partir de hoje, quando olhar para mim mesmo, vou continuar a dizer, com todo o coração: Kyrie, eleison! Mas, quando olhar para os outros, direi: Deo gratiasE não só Deo gratias, mas também, orate pro nobis: rogai por nós.

 

p.pablo de lima

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Tudo, menos tempo “comum”

Festa do Baptismo do Senhor
10 de Janeiro de 2021
Is 55, 1-11; Sal Is 12; 1 Jo 5, 1-9; Mc 1, 7-11

 

            Com a celebração do Baptismo do Senhor, termina o tempo litúrgico do Natal e começa o tempo chamado “comum”. Nas outras línguas latinas europeias, e mesmo no inglês, o termo usado é tempo “ordinário”. Porém, em português, “ordinário” significa rude ou grosseiro. Por isso, àquilo que em latim é dito “tempus per annum”, isto é, “ao correr do ano” por contraste aos tempos fortes (Natal e Páscoa), convencionou-se chamar entre nós tempo “comum”. Ora o problema é que este ano começamos um tempo que é tudo menos “comum”. Estamos a padecer uma pandemia e prestes a iniciar um novo confinamento radical; a economia padece e as pessoas sofrem em termos materiais, psicológicas e espirituais. Ninguém consegue prever o que será o futuro a curto, médio e longo prazo. De facto, quando a aprovação das vacinas parecia assinalar uma nova fase..., surgiram as mutações do vírus e os contágios desmesurados por ocasião das férias natalícias. Não voltamos sequer “à estaca zero”; estamos numa fase ainda pior do que na primeira, como o número de mortes e infeções bem demonstra. Definitivamente, este não é um tempo “comum”.

            Em boa verdade, nenhuma época viveu um tempo comum. Os sobressaltos na história e as crises espaçadas no tempo a nível individual (na psicologia do desenvolvimento de E. Erikson) ou colectivo (tensão dialéctica na filosofia de F. Hegel) são constituintes da dinâmica humana e religiosa. A última grande guerra terminou em 1945, já passaram felizmente 75 anos (o intervalo entre a primeira e a segunda foi de apenas 21 anos...). Houve conflitos permanentes e guerras internacionais e surgiu o fenómeno do terrorismo global. E, quando o Papa Francisco falava de uma “terceira guerra mundial aos pedaços”, surgiu um “inimigo” comum à toda a humanidade que concentrou as atenções e fez parar, literalmente, tudo e todos. Esta é, certamente, a pandemia mais ampla e contagiosa que a humanidade recorda. E esta é, certamente, a primeira pandemia em que os poderes globais da ciência e da política se uniram para lutar juntos e não entre si. Vivemos a pior pandemia da história e vivemos a melhor fase da história para sofrer uma pandemia.

            Neste deserto que estamos a atravessar, a Palavra de Deus e a Comunhão do Corpo e Sangue de Jesus são um bálsamo para as nossas feridas. O povo de Deus na Antiga Aliança sofreu várias epidemias devastadoras. Uma delas terá sido agravada por culpa dos governantes, mormente do rei David, como conta 2 Samuel 24. Sofreu ainda o exílio e o extermínio duma parte significativa da população. Ora precisamente nesse contexto de exílio, o profeta Ezequiel (Ex 10,18-19; 11,22-23) viu “a glória do Senhor” sair do Templo e partir como os exilados, para estar com eles, e voltar apenas quando o povo regressou à sua terra (43,1-2). Este é o nosso Deus, exilado como nós; “infectado” com os nossos vírus, “tomou sobre si as nossas enfermidades; pelas suas chagas fomos curados” (Is 53,4-5).

               Não estamos sós nem ficámos órfãos. As palavras que a voz do Céu proclamou durante o Baptismo de Jesus, ecoam hoje para nós: “Tu és o meu Filho muito amado, em Ti pus toda a minha complacência” (Mc 1,11; cfr. Is 42,1). São João afirma “vede que grande amor o Pai nos consagrou: somos chamados filhos de Deus, e somo-lo, de facto!” (1 Jo 3,1). Não sabemos, deveras, o nosso amanhã, nem sequer o nosso presente. Mas sabemos de quem somos filhos. 

 

P. Pablo Lima

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Um coração inteligente

XVII Domingo Comum - A
26 de Julho de 2020
Reis 3, 5. 7-12; Sal 118 (119); Rom 8, 28-30; Mt 13, 44-52

Um coração inteligente

            Em 1998, o psicólogo e jornalista Daniel Goleman publicou o seu best-seller “Inteligência emocional”. A sua tese é que o QI do ser humano não pode ser apenas medido em termos cognitivos, mas em termos emocionais. Reconhecer e lidar com os próprios sentimentos e saber relacionar-se com as pessoas ao nosso redor é a chave do sucesso existencial e laboral, afirma Goleman. Desde então as suas ideias tornaram-se património comum e uma grande parte das consultoras empresariais incluíram questões de inteligência emocional nos testes de aptidão. Por conseguinte, não basta a uma pessoa ter grandes capacidades mentais, ter dinheiro e saúde e um bom contexto familiar para que a vida lhe corra bem e seja feliz. É preciso saber viver.
    
            Há três mil anos atrás, um jovem príncipe de um pequeno e insignificante reino chamado Israel, na hora de subir ao trono, pediu a Deus “um coração inteligente” (1 Re 3,9). Salomão estava preocupado com a necessidade de “distinguir o bem do mal” (v.9), porque disso dependeria o êxito da sua missão e o bem-estar daqueles que lhe eram confiados. A Deus agradou a oração do rei porque não pediu “saúde, riqueza, nem a morte dos inimigos, mas sabedoria” (1 Re 5,11). Por isso, concedeu-lhe um “coração sábio e esclarecido, como nunca houve antes nem depois”. De Salomão rezam as letras sagradas que foi o rei mais brilhante do povo de Deus, que reuniu grande esplendor e poder, mas esqueceu-se de Deus e entregou-se aos ídolos. Sábio, sim; santo, não.

            A inteligência emocional necessita ser completada pela inteligência espiritual. No séc. IV, Santo Agostinho rezava “Senhor, que eu me conheça a mim mesmo; que eu Te conheça, Senhor”. O auto-conhecimento ideal é aquele que inclui o conhecimento d’Aquele que nos deu a vida e nos sustenta no ser. Muitas vezes, ocorre que pessoas que não tiveram uma formação escolar e académica prolongada sabem viver melhor do que grandes intelectuais incapazes de falar com gente simples e com tiques de snobismo. Podem não ser letrados, mas são sábios.

            Jesus não teve uma educação superior. Aprendeu os rudimentos da língua hebraica como qualquer hebreu da época, para poder ler na sinagoga. No entanto, sabia ouvir, ver, pensar, sentir, rezar. A sua sabedoria não estava fundamentada apenas na sua omnisciência divina, mas na sua humanidade plenificada pela relação com o Pai e com os outros. Por isso, Augusto Cury chama-lhe “o mais inteligente da história”.

            Diante das encruzilhadas e múltiplas opções que a vida nos apresenta todos os dias, a capacidade de decidir bem é um grande sinal de sabedoria. Decidir implica antever, preparar, sonhar, programar, estudar, ler, observar. E, depois de tudo isto, estabelecer a hierarquia de valores que leva a optar pela realidade mais justa, mais valiosa, mais feliz. Jesus afirma que a sabedoria de escolher o Reino de Deus é como a do negociante que encontra a pérola preciosa ou o tesouro escondido (Mt 13,44-46) e troca tudo para adquirir esse bem superior; ou como o pescador que distingue os peixes fracos dos bons peixes. Finalmente, “o escriba instruído” é como “o pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas”. Porque a sabedoria significa também saber onde estamos, donde viemos e para onde vamos. 

P. Pablo Lima

In Notícias de Viana (1947), 23 de Julho de 2020, p. 7.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Saudades do teu sorriso


XV Domingo Comum - A
12 de Julho de 2020
Is 55, 10-11; Sal 64 (65); Rom 8, 18-23; Mt 13, 1-23

(uma publicidade de máscara de uma fábrica brasileira) 

            Sim, caro/a leitor/a, tenho saudades do teu sorriso que se esconde por trás da máscara que tu e eu, em gesto de prevenção, respeito e amor, usamos todos os dias. Não consigo ver os teus lábios, os teus trejeitos, as tuas bochechas pálidas ou vermelhas. Só me ficam os teus olhos para ler, e se é verdade que são as janelas da alma, falta-lhes a vizinha boca que faz do teu rosto um presente único e irrepetível no mundo. Mas eu sei que o teu sorriso está lá, como está o teu beicinho franzido ou dorido, e que um dia, se Deus quiser, vamos retirar de vez este boçal a que nos forçam a pandemia e a caridade. Sejamos pacientes. E cuidadosos.
            Felizmente, “a Palavra que sai da boca de Deus” (Is 55,11; 1ª leitura) não é escamoteada ou perturbada por nenhuma máscara. Em Deus não há fingimento. A Sua Palavra é “performativa”, como gostam de afirmar a filosofia e a teologia de hoje e que o Papa Bento XVI tão bem ensinou na Exortação Verbum Domini, 53: “na liturgia, vemo-nos colocados diante da Sua Palavra que realiza aquilo que diz. Quando se educa o Povo de Deus para descobrir o carácter performativo da Palavra de Deus na liturgia, ajudamo-lo também a perceber o agir de Deus na história da salvação e na vida pessoal de cada um dos seus membros”. Isto é, Deus age verdadeiramente e actualiza os acontecimentos proclamados pela voz do leitor na Eucaristia e na oração pessoal. É “a Ele que ouvimos, quando lemos os divinos oráculos» (Sto Ambrósio, De officiis ministrorum I, 20, 88: PL 16, 50). Deus afirma pela pena de Isaías que “como a chuva e a neve que descem do céu não voltam para lá sem terem regado a terra, assim a palavra que sai da minha boca não volta sem ter produzido o seu efeito, sem ter cumprido a minha vontade, sem ter realizado a sua missão» (Is 55,10). Mas então como é que não vemos os seus efeitos? Se não os vemos é porque temos tapados não só a boca, mas também os olhos e, sobretudo, os ouvidos, como acusa Jesus no Evangelho (Mt 13,15). Na verdade, a Palavra proclamada consola, cura, salva, instrui, perdoa, ensina e, quando não é acolhida, julga. Até quando é desprezada, a Palavra é efectiva e eficiente.
            Os quatro tipos de ouvintes da Palavra foram bem “esmiuçados” por Jesus na explicação da Parábola: o néscio que não entende nem procura entender a Palavra, o desenraizado ou superficial que não suporta as contrariedades, o materialista que dedica mais tempo a cuidar do corpo mortal que do espírito imortal e o sábio que “ouve e entende e dá fruto”. Compete a cada um de nós discernir em que grupo se encontra hoje. Porque a fidelidade à Palavra de Deus não se adquire para toda a vida nem é possível viver de rendimentos espirituais. Implica esforço e dedicação quotidiana. Foi assim que muitos santos acabaram degradados e muitos pecadores acabaram nos altares.
            Um desses heróis da Palavra, por estes dias profanado nas suas estátuas, foi o Padre António Vieira, imperador da língua portuguesa. No seu famoso e sempre digno de releitura “Sermão da Sexagésima” comenta a Parábola da semente, concluindo que a culpa da infertilidade da Palavra também pode estar do lado do… pregador. Se a semente é boa e o terreno também…
           
P. Pablo Lima

In Notícias de Viana (1945), 09 de Julho de 2020, p. 7.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Amou tanto, tanto que…

Solenidade da Santíssima Trindade 
07 de Junho de 2020 
Act 2, 1-11; Sal 103 (104); 1 Cor 12, 3b-7. 12-13; Jo 20, 19-23 
Trindade de Nicolò Semitecolo - pormenor(1370), Museu diocesano de Pádua 

    A revelação da comunhão trinitária é a marca distintiva da fé cristã. Não existe paralelo semelhante em nenhuma religião, antes ou depois do cristianismo. As religiões antigas – orientais, asiáticas, greco-romana, nórdica, pre-colombiana, etc – moviam-se no espectro do politeísmo, dentro do qual admitiam um deus superior que imperava sobre os outros deuses (mesmo a tríade hindu – Brahma, Vishnu, Shiva – é apenas uma hierarquia de poder dentro do panteão das divindades, mais próxima do henoteísmo). O judaísmo – que é contemporâneo do cristianismo – e o islão – que é posterior e devedor ao cristianismo – não reconheceram e rejeitaram a plenitude da revelação do Filho de Deus e mantiveram-se estrictamente no monoteísmo. As filosofias religiosas – como o budismo e a moderna new-age – são panteístas (não existe a divindade, tudo é divino). Por sua vez, Jesus Cristo revelou-nos que Deus são três pessoas distintas, Pai, Filho e Espírito Santo, mas um só Deus. E é a isto que chamamos monoteísmo trinitário. 
    O termo “trindade” não aparece na Bíblia. É resultado da reflexão teológica. Mas a vida, o discurso e a consciência de Jesus são trinitários: “Eu e o Pai somos Um”; “Eu vos enviarei o Espírito da Verdade”; “Ide e baptizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. E, na esteira de Jesus, depressa os apóstolos e São Paulo, particularmente, começaram a usar saudações trinitárias nas suas cartas, como aquela com que começa a Eucaristia e que é retirada da carta aos Coríntios (2 Cor 13,11-13): “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”. Conhecemos, pois, a Trindade porque aprouve a Deus abrir-nos a Sua divina intimidade. Quando começamos a frequentar uma casa, uma pessoa ou uma comunidade, pouco a pouco, na medida da abertura das pessoas, começamos a conhecê-las por dentro, na sua forma de viver, pensar e ser, na sua privacidade, na sua identidade profunda e única. Sabemos que Deus é Trindade, não porque o imperador Constantino e a Igreja o inventaram (como diz a vulgata dos pseudo-historiadores contemporâneos, testemunhas de Jeová e outros), mas porque “Deus amou tanto, tanto o mundo que lhe entregou o Seu Filho Unigénito” (Jo 3,16). Sabemos que Deus é Trindade porque Deus no-lo quis revelar pela vida e palavra de Jesus. Se assim não tivesse sido, nunca o saberíamos e pensaríamos ainda hoje que Deus, antes da criação do mundo, era solitário. 
    De forma irresponsável, é costume dizer-se em âmbito homilético, que “a Trindade é um mistério” e com isto pretende dizer-se que é incompreensível, inacessível e, em certa medida, irracional. Porém, “mistério” na Sagrada Escritura não significa o “arcano”, o insulto à razão. Na Bíblia, o “mistério” é o plano do amor de Deus que “foi mantido em silêncio por tempos eternos, mas agora foi manifestado” (Rm 16,25). “Mistério” na Bíblia significa uma realidade tão grande, como Deus, que ocuparemos toda a vida a meditá-la, a pensá-la, sem nunca a abrangermos. Na verdade, quem poderá conhecer “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor de Cristo”? (Ef 3,18). 
    
    Nota artística: o óleo sobre madeira (64x69 cm) do qual acima apresentei apenas um pormenor do lado direito é uma das mais belas e invulgares representações da Trindade. Em primeiro lugar, o Espírito Santo columbomorfo surge sobre o ombro direito do Pai e não por cima d'Ele. Em segundo lugar, as feições do rosto do Pai são exactamente as mesmas do Filho, apenas com cabelo e barba compridas e umas rugas. Finalmente, o Pai não segura o filho no colo, em jeito de Pietà, como aparece algumas vezes, e a crucifixão do Filho surge sem a cruz... as mãos do Filho sobrepõem-se às do Pai que o segura e sustenta. É um gesto de uma ternura infinita, como se ambos estivessem cravados ao mesmo madeiro. Assim, a comunhão trinitária é representada em termos pictóricos, duma forma que ecoa na bula do Papa Francisco para o Ano da Misericórdia: "Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai" (Vultus misericordiae, 1)

P. Pablo Lima
In Notícias de Viana (1941), 04 de Junho de 2020, p. 7.