segunda-feira, 2 de junho de 2025

Bateram à porta. E (não) havia lugar para ele...

Na véspera de Natal de 1975, em Gales, um homem sem-abrigo bateu à porta de um antigo colega da escola primária e da catequese. Foi convidado a entrar por um momento... e lá ficou 45 anos. Com ele trazia apenas um frango congelado num saco plástico – a oferta de alguma alma caridosa – e um passado de maus-tratos em casas e instituições de acolhimento.

Assim começa a história inacreditável, mas real e comovente de Ronnie Lockwood, um órfão e adulto abandonado e, depois, acolhido por Rob Parsons e sua esposa Dianne, narrado no livro “Bateram à porta. Um sem-abrigo, um advogado... e uma família transformada para sempre”[1].

Como o próprio autor reconhece no fim do livro, a sua experiência não é repetível e, talvez, nem seja desejável. Mas esta história real e o testemunho autobiográfico da família é um poço de humanismo e sabedoria que merecem ser considerados atentamente.

Em primeiro lugar, o casal Parsons decidiu aceitar e abraçar o “transtorno” de ter uma pessoa alheia, um sem-abrigo, a viver com eles. Não foram forçados, tiveram muitas oportunidades de arranjar uma habitação alternativa para Ronnie. No entanto, decidiram ficar com ele porque não queriam somar mais um abandono a tantos já sofridos no passado por aquele a quem decidiram receber a abraçar como um dos seus. Esse novo membro da família foi transformado por eles, mas também os transformou. Cada um descobriu no outro uma bênção enviada por Deus e aprendeu a dizer em voz alta “eu amo-te muito”. Os filhos e netos encontraram naquele sem-abrigo mais do que um tio e um avô e ele encontrou neles o lar que nunca teve quando criança.

Em segundo lugar, o livro mostra como gestos gratuitos de ternura e simpatia (sobretudo a desconhecidos) podem ter um poder transformador, especialmente para quem viveu um passado de desprezo e sofrimento. Muitas pessoas deixaram profundas marcas no “sem-abrigo abrigado” quando lhe sorriram, quando o felicitaram, quando o abraçaram ou lhe confiaram pequenas tarefas nos lares, na paróquia, no centro de voluntariado. Ronnie tinha dificuldades cognitivas e sofreu maus-tratos físicos e psicológicos na infância e juventude, mas a experiência do amor e do carinho ofereceram-lhe uma segunda oportunidade. Foi uma criança até aos 75 anos, quando morreu (a idade média de morte dos sem-abrigo ronda os 45 anos...), mas morreu como uma criança amada.

Ronnie também tocou a vida de muitos e a sua experiência levou o casal Parsons a fundar uma instituição social, “Care for the Family”, para prestar apoio a pessoas nas mais variadas situações de internamento institucional, solidão ou sofrimento. Uma das mensagens mais marcantes do livro é que ninguém está livre de sofrer uma reviravolta dramática que o leve a acabar sozinho e na rua. Como dizia o Papa Francisco ao visitar pessoas que sofreram traumas de todo o tipo, “muitas vezes penso... porquê eles e não eu?!”.

            O testemunho de Rob Parson é discreto no que diz respeito à fé, mas não deixa de mencionar como todos os Domingos ia à Igreja com a família e com o Ronnie e como o seu catequista de infância e um dos voluntários da sua paróquia foram as pessoas que mais marcaram a sua vida e mais o ajudaram. Não esconde como a fé motivou as suas opções de entrega aos outros e cita longamente o texto bíblico de Mt 25: “tive fome e deste-me de comer... estava na rua e acolheste-me”. Ao mesmo tempo, desabafa a sua desilusão com pessoas muito piadosas da Igreja, mas causticamente críticas e incapazes de aceitar e ajudar outros com problemas de saúde mental, sobretudo de depressão.

            O livro acaba com uma nota triste, mas consoladora. Ronnie faleceu de uma trombose, após dois meses de internamento e durante a pandemia. Por causa das restrições sanitárias, o casal Parsons pôde visitá-lo apenas uma vez e, depois, acompanhá-lo na noite da sua partida. Rob descreve o seu arrependimento por não ter podido corresponder ao seu último pedido e às suas últimas palavras “Leva-me para casa”. Têm consciência de que, ao longo dos anos, muitas reacções deveriam ter sido diferentes, muitas coisas ficaram por fazer e muitas palavras por dizer. “A morte deveria dar mais avisos” – desabafa. Mas acima de tudo, termina com a gratidão por não ter fechado a porta naquela noite de Natal.

            E se nos batessem à porta numa noite de Natal...?

 

P. Pablo de Lima,

02.VI.2025.



[1] “A Knock at the Door: A homeless man, a lawyer . . . and a family changed forever”, Rob Parsons, Williams Collins Pub, 2024.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Um lírio, um livro e um coração transverberado. Para entender Leão XIV.


Ontem o Papa Leão descreveu-se como “um filho de Santo Agostinho”. E é-o verdadeiramente. Em primeiro lugar, porque é um frade agostiniano (em rigor, os agostinianos eram monges, porque a Ordem de Santo Agostinho segue a regra de Sto. Agostinho, do séc. V, mas foram refundados no movimento mendicante do séc. XII). Em segundo lugar, e ainda mais, porque actualizou na sua vida o espírito do santo bispo africano de Hipona (actual Argélia).

No seu brasão episcopal (já apresentado pela Santa Sé, adaptado à sua condição pontifícia, mas não alterado na sua essência) constam três símbolos. O “lírio dos vales” do Cântico dos Cânticos (2,1-2) é o símbolo mariano por excelência. Símbolo da pureza imaculada de Maria, obra mais excelsa da Santíssima Trindade, é também conhecido na versão tripartida (alusão às três pessoas divinas) ou francesa como flor-de-lis. Este é um símbolo mariano universal, não é específico da sua ordem religiosa. Não há sombra de dúvida sobre o amor terno do Papa Leão pela Virgem Santa Maria, a quem invocou sob o título de Pompeia e que nos invitou a rezar com ele a Ave-Maria.

        O livro e o coração trespassado são símbolos excelentemente agostinianos. Comecemos pelo coração que não é o coração de Jesus, como erradamente alguns se têm apressado a dizer na internet e não só. Na verdade, é o coração mesmo de Santo Agostinho e refere-se a um ideal de vida. Santo Agostinho, nascido em Tagaste (Argélia), é conhecido como o teólogo do amor e da amizade. Dele é profusamente conhecida a expressão “Pondus meum amor meus; eo feror, quocumque feror" (Conf., XXXIII,9), que poderíamos traduzir como “o meu amor é o meu peso, é ele que me move para onde quiser”. “Peso” quer dizer “centro de gravidade” e consistência. Para Santo Agostinho, o amor é a verdadeira força motora e, por isso, afirmava que é necessário tudo organizar segundo o “ordo amoris”, a ordem/forma do amor (De Doct. Christ. I,28; De Vera Rel. 48,93).
        Esta centralidade do amor levou à invenção de uma frase atribuída a Santo Agostinho e que pulula na internet: “ama et quod vis fac”, isto é, “ama e faz o que quiseres”. A frase é linda e muito original, mas não é de Santo Agostinho. De Santo Agostinho é sim uma outra, vivida à saciedade pelo Papa Leão XIV: “sit amoris officium pascere dominicum gregem” (In Ioh. Evang., 123, 5), isto é, “apascentar o rebanho do Senhor seja um serviço de amor”. Por estes dias, circulam já fotos do então bispo de Chiclayo, no Perú, a servir sopa aos pobres e a visitar as comunidades de cavalo, para poder chegar aonde os carros ainda não podem deslocar-se, vivendo assim na prática o “ofício do amor”.
        O coração transverberado é um episódio simbólico da vida de Santo Agostinho, ainda que a maior parte dos cristãos só o conheçam aplicado à vida de Santa Teresa de Jesus, na famosíssima escultura de Bernini. No entanto, quase toda a iconografia de Santo Agostinho o apresenta com o báculo de bispo numa mão e, na outra, o livro aberto sobre o qual repousa um coração em chamas (ou trespassado por uma seta abrasada). A “transverberação” ou perfuração do coração de Agostinho inspira-se nesta frase das Confissões: “percussisti cor meum verbo tuo et amavi te”, isto é, “trespassaste (ou ‘feriste’) o meu coração com a tua palavra e comecei a amar-te” (Conf. X,6,8). Agostinho refere explicitamente que o instrumento da ferida foi a Palavra de Deus e, por isso, o coração em chamas estrategicamente colocado sobre um livro, isto é, sobre a Bíblia.
        A junção destes dois elementos – o livro e o coração – está associada ainda a outra expressão de Santo Agostinho: “mens et amor et notitia (…) unum sunt” (De Trin. IX,4,4) ou, “a mente, o amor e o conhecimento são uma coisa só”. Ou, nas palavras magistrais de São Gregório: “amoris ipse notitia est” (In Ev., II, 27, 4), “o amor é em si mesmo conhecimento”. De facto, para Santo Agostinho o amor move a querer conhecer e ensina quem é o Amado. Na teologia e espiritualidade agostinianas, amar a Deus leva a desejar conhecer Deus profundamente, não só na oração, mas também no estudo das Escrituras. Por isso, Santo Agostinho foi um estudioso e pregador insigne das Sagradas Escrituras e Robert Prévost não o foi menos como frade, pároco, professor, reitor e bispo.
        Um outro significado do livro está associado a um episódio da vida de Santo Agostinho, relatado por ele mesmo na sua autobiografia “As Confissões” (VIII, XII, 29). Recorda o Padre da Igreja que, estando um dia num jardim, ouviu uma voz de criança que lhe dizia “tolle, lege; tolle, lege”, isto é, “toma e lê, toma e lê”!”. Obedecendo, pegou na Carta aos Romanos (13,13-14) e, lendo a exortação a abandonar as obras da carne e revestir-se de Cristo, deu o passo final de ser baptizado e tornar-se cristão: “Tinhas convertido a ti o meu ser” (VIII, XII, 30). Assim, as Escrituras foram o instrumento definitivo pela qual se operou a conversão de Aurélio Agostinho ao evangelho de Jesus.
        Por estas ideias centrais em Santo Agostinho, o lema da ordem agostiniana é “Amor et Scientia” ou “Amor e Conhecimento” ou “Amor e Estudo”. Desta forma, para os agostinianos, a vida cristã, e ainda mais a vida sacerdotal ou episcopal, consistem no amor ou caridade e no estudo, conhecimento e ensino da Palavra.Porém, o Papa Leão XIV, escolheu como seu lema episcopal uma outra frase de Santo Agostinho: “In illo uno unum” (Enarr. in Ps 127,3) ou, “N’Ele, que é Um (só), somos um”. Mas deixemos para outra momento a reflexão sobre este apelo à unidade dos crentes em Cristo. Por enquanto, não ficam dúvidas de que Leão XIV é um “filho de Santo Agostinho”.

P. Pablo de Lima, 09.V.2025.

 

Ps. O meu percurso vocacional começou na Venezuela com a Ordem Agostiniana Recoleta (OAR) que me incutiu o amor à figura e escritos de Santo Agostinho, particularmente o P. José Luís Uruñuela. Este pequeno texto é também uma pequena homenagem pela marca que deixaram na minha caminhada e que agora reencontro pelo exemplo do Papa Leão XIV, primeiro papa agostiniano da história da Igreja.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Papa Leão XIV, “un regalo de Dios”


Escrevo estas linhas ainda a tentar controlar a emoção que nos sobrevem nestes momentos, pouco antes de celebrar a primeira Eucaristia “em comunhão com o nosso Papa Leão”.

Esta hora recorda-nos o dom extraordinário do Baptismo, que nos fez filhos de Deus e membros da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica a quem agora o Papa Leão XIV preside e governa. Bem dizia o M.-D. Chenu que “nascer dentro da tradição da Igreja é ser rico à nascença”. É fazer parte do único povo de Deus no qual Leão sucede a Francisco, que sucedeu a Bento, que sucedeu a João Paulo II..., e assim de forma ascendente até ao apóstolo São Pedro, servo de Jesus Cristo. É sermos ramos da única árvore cujas raízes brotam do jardim de Deus e cuja seiva é a Eucaristia. Somos membros pequeninos de um povo grande, porque serve, ama e segue o Senhor Jesus, onde cabem todos e onde as nacionalidades não são um risco ou um perigo, mas uma oportunidade. Somos cristãos, porque procedemos de Cristo. E Leão, citando as palavras de santo Agostinho, disse-nos que “convosco sou cristão, para vós sou bispo”.

Não conheço nem consigo fazer uma partilha apropriada sobre as palavras e a figura do Papa Leão. Mas comove-me que tenha falado em espanhol, dirigindo-se ao povo do Perú, cuja nacionalidade assumiu em 2005, e aos católicos da América Latina e de todo o mundo. Uma amiga mexicana escreveu-me: “já o queremos tanto!”. Comove-me que tenha começado por saudar-nos com a Paz “desarmada e desarmante” de Cristo ressuscitado, que tenha insistido que Deus nos ama a todos incondicionalmente, que tenha exortado à unidade, sinodalidade e espírito missionário da Igreja.

Levou-me às lágrimas e consolou-me que também ele se tivesse comovido, a voz embargada pela emoção, o nariz e a garganta a reagir contra as lágrimas quase a fugir... Um pastor emocionado ao ver as ovelhas do rebanho que o saúdam com afecto! Que boa a sua recordação carinhosa do Papa Francisco! E que força na sua exortação a não termos medo...!

Que bonito receber palavras de estima e felicitações de um presbítero anglicano, um bispo ortodoxo, um pastor reformado, uma ministra metodista, e gestos de amizade de judeus e muçulmanos para quem esta notícia não é indiferente... e todos eles a dizer, quase com as mesmas palavras, que o Papa é para todos um sinal de esperança! Não por acaso esse foi o título da autobiografia de Francisco. Num mundo dividido, onde cada dia (literalmente!) surgem notícias de novos conflitos armados, que reconfortante é que Deus nos ofereça ainda um apóstolo e servo da paz.

Por estes e tantos outros motivos que a misericórdia do Alto nos permitirá descobrir nos próximos tempos, tenho a certeza desde já que o Papa Leão XIV é um “regalo de Dios”.

P. Pablo de Lima, 08.V.2025

domingo, 5 de dezembro de 2021

Terraplanagem e Saudades - II Domingo do Advento

05 de Dezembro de 2021

Bar 5, 1-9; Sal 125 (126); Flp 1, 4-6.8-11; Lc 3, 1-6



            O Advento é o tempo litúrgico mais curto do ano. Raramente chega a ter quatro semanas completas e passam tão depressa! Os dias parecem ser mais curtos do que a duração das velas na coroa... Quando finalmente prestamos atenção, damos conta que o Natal é já nessa semana! Talvez por isso o rito ambrosiano (Milão e arredores) conta seis semanas de Advento à semelhança da Quaresma. Durante vários anos, costumava fazer retiro espiritual naquela região em fins de Novembro e celebrava aí o primeiro Domingo de Advento. Quando finalmente regressava a Portugal... voltava à primeira semana 

            Normalmente é o terceiro Domingo que é chamado “Gaudete” ou “da alegria” (lit. “alegrai-vos”), mas a liturgia deste Domingo é já uma exortação ao júbilo. O profeta Baruc dirige-se ao povo, personificado na cidade santa, como quem fala a uma mulher: “Jerusalém (...) veste-te com a beleza da glória de Deus (...) cobre-te com justiça, o diadema da glória... o teu esplendor... paz... glória... piedade... vê os teus filhos reunidos... felizes... em triunfo... Deus conduzirá Israel na alegria... com a misericórdia e a justiça”. Baruc foi secretário de Jeremias antes da destruição de Jerusalém (Jer 36,4-32), mas, tendo sido capturado, foi também exilado para a Babilónia. Nessa circunstância tão dolorosa, proferiu as palavras grávidas de entusiasmo e esperança que escutamos hoje. Na escuridão da noite e da tragédia, o profeta anuncia que Deus não abandona o Seu povo e, por isso, pode renascer a alegria.

            Parte da profecia de Baruc (5,7) ecoa a profecia de Isaías (40,4) que Lucas (3,5) também cita no evangelho de hoje: “Deus decidiu abater todos os altos montes e as colinas seculares e encher os vales, para se aplanar a terra”. O protagonista desta terraplanagem é João Baptista (Lc 3,2). João tem um pé na Antiga Aliança (ou Antigo Testamento) e o outro pé na Nova Aliança. A sua mensagem, o seu estilo, a sua palavra replicam as grandes personagens do passado como Moisés e Elias e, graças a ele, o espírito de profecia acorda novamente em Israel. Mas João é também aquele que abre a porta ao Messias, que olha para a frente, para o futuro e “prepara o caminho para o Senhor”.

            Lucas parece obcecado em dar-nos pormenores do contexto político, religioso, familiar e geográfico no qual “foi dirigida a palavra de Deus a João”: “no décimo quinto ano do imperador Tibério, quando Pôncio Pilatos era governador da Judeia, Herodes tetrarca da Galileia (...), no pontificado de Anás e Caifás (...) a João, filho de Zacarias, no deserto (...) em toda a zona do rio Jordão”. O evangelista quer deixar bem claro que a Palavra de Deus encarna verdadeiramente na realidade, no tempo presente, no “aqui e agora” de Deus e do ser humano. Nunca é demais insistir nisto. Porque a tentação de todas as religiões e de todos os crentes é focar-se no folclore do passado e numa ideologia da tradição que se fixa nos pormenores exteriores e esquece o essencial da Palavra e da Caridade. Aquilo que por vezes se chama “tradição” não era mais do que o tempo “presente” dos outros no passado. Mas é mais fácil abraçar a repetição do passado do que a responsabilidade e a canseira de viver o evangelho no mundo de hoje e pregá-lo com linguagem deste tempo.

            A exortação do Profeta do Deserto é que abatamos “os montes e as colinas” do nosso orgulho e auto-suficiência”; que alteemos “os vales” da tristeza e da depressão que nos tentam no deserto; que endireitemos “os caminhos tortuosos” da mentira, da falsidade e dissimulação com que pactuamos. Por outras palavras, que façamos na nossa vida, nas nossas famílias e comunidades, na nossa sociedade e na Igreja um trabalho de terraplanagem das “veredas escarpadas”, para caminhar sem atropelos e acidentes ao encontro do Senhor e dos irmãos. Assim, poderemos experimentar a “remissão dos pecados” e “toda a criatura verá a salvação de Deus”.

            A epístola aos Filipenses é uma das cartas do cativeiro, que Paulo escreveu na prisão. A abertura que hoje lemos é comovente, ainda que a tradução litúrgica não destaque claramente os sentimentos do apóstolo. Alertando os cristãos para o “Dia de Cristo”, exortando-os a um amor fraterno sempre crescente, afirma que, ao recordar-se deles, “reza com alegria”. Em seguida, desavergonhadamente abre o coração e diz: “Deus é testemunha de que tenho saudades de todos vós, nas entranhas de Cristo Jesus” (Flp 1,8). O Advento, tempo de preparação para o “Dia de Cristo”, o Natal, é tempo de saudade e gratidão. Olhamos para trás e reconhecemos quanto temos para agradecer e sentimos, mais do que noutros momentos do ano, a saudade daqueles que nos deixaram. O tempo é breve, aproxima-se a hora do reencontro. Vamos...?!

 

P. Pablo Lima

 

 

 

domingo, 28 de novembro de 2021

Levantar a cabeça - I Domingo do Advento

28 de Novembro de 2021

Jer 33, 14-16; Sal 24 (25); 1 Tes 3,12–4, 2; Lc 21, 25-28. 34-36

 

            Nos últimos dias, fomos surpreendidos com uma insultuosa recomendação de um membro do governo que sugeria aos profissionais da saúde maior “resiliência”. É sempre fácil “receitar resiliência” a quem se encontra no terreno a partir de um gabinete ou conferência de imprensa... Neste momento em que, pelo terceiro ano consecutivo, parece que viveremos um novo Advento e Natal com a sombra de uma nova variante do covid19, aquilo que mais precisamos é de quem nos ajude a levantar a cabeça, não a baixá-la.

            O trecho evangélico deste Domingo é surpreendente e provocou as reacções mais estranhas ao longo dos séculos. Por causa desta pregação apocalíptica de Jesus, muitos milhares de cristãos convenceram-se que o fim do fundo estava ao virar da esquina. Obviamente, enganaram-se. Ou melhor, acertaram em que era o fim “de um mundo”, não “do mundo”. Só no século passado e bem perto de nós, o fim do mundo foi agendado para 1914, 1941 e 1975 (testemunhas de Jeová, e outros) e foram numerosos os suicídios em massa (sobretudo nos USA) perto do ano 2000. Os discursos escatológicos (isto é, sobre as “últimas realidades” ou tempos) de Jesus têm vários níveis de leitura. Em primeiro lugar, Jesus falava do carácter frágil e transitório de toda vida humana: a morte individual (Mt 25,13-30). Em segundo lugar, aludia à iminente destruição de Jerusalém e do Templo, ressalvando que “ainda não será o fim (Mc 13,1-7). Finalmente, Jesus referia-se ao seu regresso no fim dos tempos, a propósito do qual “só o Pai conhece o dia e a hora” (Mc 13,32). Na sua forma actual, estes discursos e estes níveis encontram-se misturados nos evangelhos e, por isso, podem provocar ansiedade e consternação e propiciar interpretações erróneas.

            Não é por acaso que o texto mais antigo do Novo Testamento e anterior aos mesmos evangelhos – a primeira carta aos Tessalonicenses – lidava já com estas questões. São Paulo sentiu a necessidade de exortar os crentes a não baixar os braços porque nem o regresso de Jesus era iminente nem o desânimo ou a preguiça eram atitudes condizentes com a expectativa. Por isso, escreve “o Senhor vos faça crescer e abundar na caridade fraterna... deveis progredir ainda mais”. Só desta forma o Senhor vos confirmará “numa santidade irrepreensível no dia da vinda de Jesus, Nosso Senhor, com todos os santos” (3,12).

            Jesus inaugurou o Reino de Deus com a Sua Vida e Palavra, com a Sua morte e ressurreição. Mas não o consumou. O Reino está ainda em construção e, enquanto vemos sinais da Sua Presença em tantas vidas e realidades deste mundo, um olhar sincero e pragmático também nos assegura que o cumprimento das profecias está ainda longe de se ter realizado. Curiosamente, no evangelho de hoje foram retirados dois versículos com a parábola da figueira (Lc 21,29-30) nos quais Jesus afirma que “quando começa a deitar rebentos, sabeis que o verão está próximo”. Um desses rebentos, conforme aparece na primeira leitura (Jer 33,16) é o exercício da justiça sobre a terra. Nesses dias, Jerusalém será chamada “O Senhor é a nossa justiça” (Jer 33,16), isto é, será um lugar de equidade e paz. Se assim deve ser, então, falta ainda muito para a Parusia (manifestação gloriosa) de Cristo.

            Entretanto, como filhos de Deus, vivemos numa esperança criativa e audaz e não baixamos os braços. Ao anunciar cataclismos, Jesus não convida ao pavor. Pelo contrário, encoraja e exorta dizendo: “erguei-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”. Mas adverte “tende cuidado para que os vossos corações não se tornem pesados pela intemperança, a embriaguez e as preocupações”. Por isso, rezamos no Salmo 24: “para ti, Senhor, levanto a minha alma”.

            Ao aproximar-se a celebração do Natal, no meio dos desafios e riscos do nosso tempo, com o olhar fixo em Jesus, levantemos a cabeça e avancemos com coragem e determinação. Vivamos cada dia com gratidão e entusiasmo. E ouçamos as palavras de Cristo: “Tende coragem, eu venci o mundo” (Jo 16,33).


P. Pablo Lima

 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Quando olho para os outros...

(Mosaico de M.I.Rupnik, Basílica da Ssma. Trindade, Fátima)

 Quando olho para os outros… todos santos e pecadores!

Solenidade de Todos os Santos 2021 

Há alguns anos, perguntaram a um bispo como se sentia, a propósito dos difíceis problemas que estava a enfrentar na sua diocese. O bispo respondeu: “quando olho para a minha situação, digo ‘Kyrie, eleison… Senhor, tende piedade!’, mas… quando olho para os outros digo ‘Deo gratias! Graças a Deus!’ ”. 😁Obviamente, estava não só a justificar-se, mas a desviar a atenção de si para os outros; uma racionalização que todos nós fazemos frequentemente para nos consolarmos. A resposta tornou-se mais ou menos um cliché em certos meios e, de vez em quando, alguns ainda começam a frase... “quando olho para mim... Kyrie, eleison... mas quando olho para os outros...”. Nem é preciso completar. 😁

          Curiosamente, quando estava a preparar a homilia de hoje, esta frase veio-me à memória, mas com um sentido completamente contrário. De facto, é mesmo assim que me sinto ao meditar na Solenidade de Todos os Santos. Quando olho para mim, meus pecados, as minhas misérias, as minhas falhas na hora de ser um bom cristão e um bom padre, sinceramente, rezo Kyrie, eleison! Mas quando olho para as maravilhas que Deus fez e continuar a fazer em homens e mulheres de todo tempo e lugar, através da sua obediência à Palavra de Jesus, digo cheio de alegria Deo gratias!

Em certa medida, quem me dera que estivéssemos já nos tempos apocalípticos. Quando digo “apocalípticos”, não me refiro aos programas de tv que apresentam cataclismos climáticos ou invasões de zombies. Refiro-me ao significado original da palavra “apocalypsis” que dá nome ao último livro do Novo Testamento que hoje foi proclamado na primeira leitura (7,2-4.9-14). Apocalypse, em grego, significa revelação. E a revelação que este livro faz é sobre a transformação final da Humanidade e do Universo em harmonia com Deus. As series de tv apresentam como o “estado final” da história um estado caótico de violência, doença e morte. A Bíblia, pelo contrário, apresenta como estado final da história uma era de paz, amor, e vida sem fim. E é esse tempo apocalíptico que eu desejo!

João, ou o autor do livro do Apocalipse, fala-nos de uma multidão de 144.000 servos de Deus “com o selo na fronte”. O número é claramente simbólico (ao contrário do que algumas seitas cristãs defendem): significa as Doze tribos de Israel, o povo da Antiga Aliança, multiplicado pelos Doze Apóstolos, o povo da Nova Aliança, multiplicado por mil, sinal de grandeza. A continuação, João apresenta uma outra “multidão imensa, que ninguém pode contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão”. Quando abrimos o “Martirológio romano”, o catálogo litúrgico dos santos e mártires que são recordados em cada dia do ano, podemos contar milhares e milhares de pessoas. Em alguns dias, celebramos mesmo centenas de mártires numa só memória, muitos deles vítimas das revoluções do século XX. Mas, se acrescentarmos os membros das nossas famílias, nossos amigos, e todos aqueles e aquelas que não conhecemos, de todos os séculos antes de nós e todos os lugares do mundo, “cuja fé só Deus conheceu” (como rezaremos no Cânone Romano), aqueles e aquelas que não têm imagens nos altares das igrejas, mas têm um lugar especialíssimo no coração de Deus, então, podemos ter, pelo menos, uma pálida ideia de quão grande é esta multidão.

Aquilo que os fez santos não foi fazer milagres durante ou depois da sua vida. Nem sequer foi a canonização, porque esta só confere pública veneração e reconhecimento. Aquilo que os fez santos foi seguir os passos de Jesus, conforme as Bem-aventuranças. Gosto muito da tradução inglesa que começa “Como são felizes...!”. “Bem-aventurados” é um termo teológico muito rico, mas como ser “felizes” é aquilo que os manuais de auto-ajuda dos supermercados e livrarias tentam ensinar sem conseguir, enquanto muitos ainda pensam que a Igreja é “triste” e faz pessoas “frustradas”. Mas, na verdade, “felizes!!! são os pobres em espírito, os mansos, os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, os perseguidos pelo Reino de Deus” (Mt 5). Eu estou muito longe de tudo isto, não sou nada que se lhe pareça. No entanto, sou feliz porque conheço gente que é mesmo assim. Conheci e conheço (tanto quanto é possível saber humanamente) homens e mulheres que foram e são santos, sem auréolas à volta da cabeça e mãos-postas. E tenho a certeza de que não só me encorajam, mas dão-me um exemplo, intercedem e rezam por mim.

Por isso, a partir de hoje, quando olhar para mim mesmo, vou continuar a dizer, com todo o coração: Kyrie, eleison! Mas, quando olhar para os outros, direi: Deo gratiasE não só Deo gratias, mas também, orate pro nobis: rogai por nós.

 

p.pablo de lima

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Tudo, menos tempo “comum”

Festa do Baptismo do Senhor
10 de Janeiro de 2021
Is 55, 1-11; Sal Is 12; 1 Jo 5, 1-9; Mc 1, 7-11

 

            Com a celebração do Baptismo do Senhor, termina o tempo litúrgico do Natal e começa o tempo chamado “comum”. Nas outras línguas latinas europeias, e mesmo no inglês, o termo usado é tempo “ordinário”. Porém, em português, “ordinário” significa rude ou grosseiro. Por isso, àquilo que em latim é dito “tempus per annum”, isto é, “ao correr do ano” por contraste aos tempos fortes (Natal e Páscoa), convencionou-se chamar entre nós tempo “comum”. Ora o problema é que este ano começamos um tempo que é tudo menos “comum”. Estamos a padecer uma pandemia e prestes a iniciar um novo confinamento radical; a economia padece e as pessoas sofrem em termos materiais, psicológicas e espirituais. Ninguém consegue prever o que será o futuro a curto, médio e longo prazo. De facto, quando a aprovação das vacinas parecia assinalar uma nova fase..., surgiram as mutações do vírus e os contágios desmesurados por ocasião das férias natalícias. Não voltamos sequer “à estaca zero”; estamos numa fase ainda pior do que na primeira, como o número de mortes e infeções bem demonstra. Definitivamente, este não é um tempo “comum”.

            Em boa verdade, nenhuma época viveu um tempo comum. Os sobressaltos na história e as crises espaçadas no tempo a nível individual (na psicologia do desenvolvimento de E. Erikson) ou colectivo (tensão dialéctica na filosofia de F. Hegel) são constituintes da dinâmica humana e religiosa. A última grande guerra terminou em 1945, já passaram felizmente 75 anos (o intervalo entre a primeira e a segunda foi de apenas 21 anos...). Houve conflitos permanentes e guerras internacionais e surgiu o fenómeno do terrorismo global. E, quando o Papa Francisco falava de uma “terceira guerra mundial aos pedaços”, surgiu um “inimigo” comum à toda a humanidade que concentrou as atenções e fez parar, literalmente, tudo e todos. Esta é, certamente, a pandemia mais ampla e contagiosa que a humanidade recorda. E esta é, certamente, a primeira pandemia em que os poderes globais da ciência e da política se uniram para lutar juntos e não entre si. Vivemos a pior pandemia da história e vivemos a melhor fase da história para sofrer uma pandemia.

            Neste deserto que estamos a atravessar, a Palavra de Deus e a Comunhão do Corpo e Sangue de Jesus são um bálsamo para as nossas feridas. O povo de Deus na Antiga Aliança sofreu várias epidemias devastadoras. Uma delas terá sido agravada por culpa dos governantes, mormente do rei David, como conta 2 Samuel 24. Sofreu ainda o exílio e o extermínio duma parte significativa da população. Ora precisamente nesse contexto de exílio, o profeta Ezequiel (Ex 10,18-19; 11,22-23) viu “a glória do Senhor” sair do Templo e partir como os exilados, para estar com eles, e voltar apenas quando o povo regressou à sua terra (43,1-2). Este é o nosso Deus, exilado como nós; “infectado” com os nossos vírus, “tomou sobre si as nossas enfermidades; pelas suas chagas fomos curados” (Is 53,4-5).

               Não estamos sós nem ficámos órfãos. As palavras que a voz do Céu proclamou durante o Baptismo de Jesus, ecoam hoje para nós: “Tu és o meu Filho muito amado, em Ti pus toda a minha complacência” (Mc 1,11; cfr. Is 42,1). São João afirma “vede que grande amor o Pai nos consagrou: somos chamados filhos de Deus, e somo-lo, de facto!” (1 Jo 3,1). Não sabemos, deveras, o nosso amanhã, nem sequer o nosso presente. Mas sabemos de quem somos filhos. 

 

P. Pablo Lima