sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O Anjo da Aliança e a Genealogia da Felicidade

Festa da Apresentação do Senhor
02 de Fevereiro de 2020
Ml 3, 1-4; Sal 23 (24); Hb 2, 14-18; Lc 2, 22-40


                Porquê levaram o menino a Jerusalém para o apresentar ao Senhor? Na verdade, a Lei não obrigava a deslocar-se ao Templo para este rito. Muito provavelmente já teriam feito a oferta ou sacrifício do primogénito porque São Lucas nem sequer fala dele. Aliás é com evidente desconforto e sobretudo para relatar o encontro com Simeão e Ana que o evangelista fala do contexto temporal do acontecimento. Vamos por partes.
                A versão ainda em uso no lecionário traduz Lc 2,22 da seguinte forma: “ao chegarem os dias da purificação…”. Na nova versão de “Os Quatro Evangelhos e os Salmos” da CEP já aparece corrigido: “quando se cumpriram os dias da purificação deles”. Mas… quem são eles? A Lei do Antigo Testamento (Lv 12,1-8) prescrevia que a mãe ficava impura durante quarenta dias, por ter tocado no sangue do parto (caso fosse um menino; se fosse uma menina, a impureza ritual durava oitenta dias...). Nesse sentido, Maria sobe ao Templo para oferecer as duas rolas (que era a oferta dos pobres, pois a oferta ordinária seria um cabrito) e recuperar a pureza ritual que lhe conferia direito de oração pública (isto é, entrar no Átrio das mulheres no Templo, por exemplo). Quanto ao menino, nada havia a purificar, segundo a Lei. Mas havia um “resgate a pagar” que consistia em sessenta gramas de prata (cinco moedinhas, siclos ou shekalim; Nm 18,15-16) porque “todo o primogénito pertence ao Senhor” (Ex 13,12; 34,20). Mas… São Lucas nada conta do “resgate” do menino ou pagamento das cinco moedas. É compreensível, aliás: Jesus não tem de ser “resgatado” do Senhor porque Ele é totalmente e continuará a ser “do Senhor”, é o Filho do Senhor do Céu e da Terra, é o Senhor feito carne. Em contrapartida, Lucas expõe o evento como “para a apresentação do Senhor”. Talvez fosse mais correcto traduzir “para a apresentação pelo Senhor”. De facto, o que acontece não é que Jesus é apresentado ao Senhor; mas que o Senhor apresenta Jesus ao seu povo, nas pessoas de Simeão e Ana.
São estes os motivos pelos quais lemos Malaquias (3,1) em diálogo com o Evangelho: “entrará no seu templo o Senhor a quem buscais, o Anjo da Aliança por quem suspirais”. Recorde-se que Malaquias é o último dos profetas do Antigo Testamento, a última voz até à vinda de João Baptista e Jesus. Portanto, as suas palavras eram bem conhecidas de todos, particularmente de Simeão e de Ana que, por esse mesmo motivo, rondavam sempre o Templo. A tradução litúrgica portuguesa segue as versões grega e latina e traduz como “Anjo” em vez de “Mensageiro” da Aliança, sublinhando o carácter divino e transcendente (o mensageiro pode ser apenas humano, o Anjo vem sempre do Alto). É um título cristológico belíssimo e a tradição cristã depressa deixou de chamar “Anjo” a Jesus, apesar de que no Apocalipse (1,13; 10,1; e na Didaké) sugere-se o mesmo epíteto glorioso para Cristo. Pessoalmente, Jesus é o meu Anjo da Guarda por excelência, do qual o “Anjinho da Guarda” é apenas o sinal…
                Voltemo-nos agora para a figura central de… Ana. São poucas as mulheres que a Bíblia designa como profetizas (Miriam, Débora e Hulda no AT; Ana e as Quatro Irmãs em Act 21,9). Ana é a típica figura que no nosso estilo superficial e jocoso gostamos de chamar “beata”, pois refere Lucas que era “de idade muito avançada (…) oitenta e quatro anos”, viúva há perto de sessenta anos e que “não se afastava do templo, servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações”. Mas a nossa superficialidade passa à frente, muito depressa, a genealogia humana e espiritual de Ana que esconde a sua verdadeira riqueza. “Ana” vem de “hen”, dom, graça, dádiva. Era “filha de Panuel” ou “Fenuel” que significa “o rosto” (de Deus), isto é, via e era vista por Deus. Da Tribo de “Asher” (Gn 30,13; 49,20; Nm 26,44), que significa “feliz” (Sl 1,1) ou “bem-aventurado” (Mt 5,3). E, sem referir as suas exactas palavras, Lucas resume, dizendo: “começou também a louvar a Deus e a falar acerca do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém” (2,38). Às vezes, a felicidade que vem de Deus esconde-se de forma paradoxal.

P. Pablo Lima

In Notícias de Viana (1924), 30 de Janeiro de 2020, p. 7.

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