Festa da Apresentação do Senhor
02 de Fevereiro de 2020
Ml 3, 1-4; Sal 23 (24); Hb 2, 14-18; Lc 2, 22-40
Porquê
levaram o menino a Jerusalém para o apresentar ao Senhor? Na verdade, a Lei não
obrigava a deslocar-se ao Templo para este rito. Muito provavelmente já teriam
feito a oferta ou sacrifício do primogénito porque São Lucas nem sequer fala
dele. Aliás é com evidente desconforto e sobretudo para relatar o encontro com
Simeão e Ana que o evangelista fala do contexto temporal do acontecimento.
Vamos por partes.
A
versão ainda em uso no lecionário traduz Lc 2,22 da seguinte forma: “ao
chegarem os dias da purificação…”. Na nova versão de “Os Quatro Evangelhos e os
Salmos” da CEP já aparece corrigido: “quando se cumpriram os dias da
purificação deles”. Mas… quem são eles? A Lei do Antigo Testamento (Lv 12,1-8)
prescrevia que a mãe ficava impura durante quarenta dias, por ter tocado no
sangue do parto (caso fosse um menino; se fosse uma menina, a impureza ritual
durava oitenta dias...). Nesse sentido, Maria sobe ao Templo para oferecer as
duas rolas (que era a oferta dos pobres, pois a oferta ordinária seria um
cabrito) e recuperar a pureza ritual que lhe conferia direito de oração pública
(isto é, entrar no Átrio das mulheres no Templo, por exemplo). Quanto ao
menino, nada havia a purificar, segundo a Lei. Mas havia um “resgate a pagar”
que consistia em sessenta gramas de prata (cinco moedinhas, siclos ou shekalim;
Nm 18,15-16) porque “todo o primogénito pertence ao Senhor” (Ex 13,12; 34,20).
Mas… São Lucas nada conta do “resgate” do menino ou pagamento das cinco moedas.
É compreensível, aliás: Jesus não tem de ser “resgatado” do Senhor porque Ele é
totalmente e continuará a ser “do Senhor”, é o Filho do Senhor do Céu e da
Terra, é o Senhor feito carne. Em contrapartida, Lucas expõe o evento como
“para a apresentação do Senhor”. Talvez fosse mais correcto traduzir “para a
apresentação pelo Senhor”. De facto, o que acontece não é que Jesus é
apresentado ao Senhor; mas que o Senhor apresenta Jesus ao seu povo, nas
pessoas de Simeão e Ana.
São estes os motivos pelos quais lemos Malaquias (3,1) em
diálogo com o Evangelho: “entrará no seu templo o Senhor a quem buscais, o Anjo
da Aliança por quem suspirais”. Recorde-se que Malaquias é o último dos
profetas do Antigo Testamento, a última voz até à vinda de João Baptista e
Jesus. Portanto, as suas palavras eram bem conhecidas de todos, particularmente
de Simeão e de Ana que, por esse mesmo motivo, rondavam sempre o Templo. A
tradução litúrgica portuguesa segue as versões grega e latina e traduz como
“Anjo” em vez de “Mensageiro” da Aliança, sublinhando o carácter divino e
transcendente (o mensageiro pode ser apenas humano, o Anjo vem sempre do Alto).
É um título cristológico belíssimo e a tradição cristã depressa deixou de
chamar “Anjo” a Jesus, apesar de que no Apocalipse (1,13; 10,1; e na Didaké)
sugere-se o mesmo epíteto glorioso para Cristo. Pessoalmente, Jesus é o meu
Anjo da Guarda por excelência, do qual o “Anjinho da Guarda” é apenas o sinal…
Voltemo-nos agora para a figura
central de… Ana. São poucas as mulheres que a Bíblia designa como profetizas
(Miriam, Débora e Hulda no AT; Ana e as Quatro Irmãs em Act 21,9). Ana é a
típica figura que no nosso estilo superficial e jocoso gostamos de chamar
“beata”, pois refere Lucas que era “de idade muito avançada (…) oitenta e
quatro anos”, viúva há perto de sessenta anos e que “não se afastava do templo,
servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações”. Mas a nossa
superficialidade passa à frente, muito depressa, a genealogia humana e
espiritual de Ana que esconde a sua verdadeira riqueza. “Ana” vem de “hen”,
dom, graça, dádiva. Era “filha de Panuel” ou “Fenuel” que significa “o rosto”
(de Deus), isto é, via e era vista por Deus. Da Tribo de “Asher” (Gn 30,13;
49,20; Nm 26,44), que significa “feliz” (Sl 1,1) ou “bem-aventurado” (Mt 5,3).
E, sem referir as suas exactas palavras, Lucas resume, dizendo: “começou também
a louvar a Deus e a falar acerca do Menino a todos os que esperavam a
libertação de Jerusalém” (2,38). Às vezes, a felicidade que vem de Deus
esconde-se de forma paradoxal.
P. Pablo Lima
In Notícias de Viana (1924), 30 de Janeiro de 2020, p. 7.
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