quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O sal queima e não tem prazo de validade

V Domingo do Tempo Comum – A
09 de Fevereiro de 2020
Is 58, 7-10; Sal 111 (112); 1 Cor 2, 1-5; Mt 5, 13-16

                O sal era um dos principais objectos de comércio no mundo antigo. Era tão importante que os soldados romanos podiam receber o pagamento em sacos de sal e as pensões dos oficiais do exército romano faziam-se pela concessão de propriedade de salinas que garantiam rendimentos vitalícios. Assim nasceu a expressão “salário”.
                Três das principais funções do sal no mundo antigo decaíram ou desapareceram. Não parece que a sua principal utilidade fosse a culinária. Evitando o seu uso na cozinha, poupavam em medicação para controlar a tensão arterial…
                O sal era usado, principalmente, para a conservação dos alimentos. Até há poucas décadas, não havendo frigorífico, as carnes eram salgadas e conservadas nas salgadeiras que não faltavam em nenhuma casa de família. E nos barcos, sobretudo nos barcos.
                Em segundo lugar, o sal tinha funções terapêuticas: era usado em abluções, para “cauterizar” feridas, como anti-inflamatório e desinfetante. Nalgumas casas, ainda antes de existir o soro fisiológico à venda nas farmácias, já usavam água tépida com sal para aliviar as vias nasais, por exemplo.
                Finalmente, o sal era um combustível. Ou, melhor, era um catalisador. E é a isto que, provavelmente, se referem as palavras de Jesus no Evangelho de hoje: “Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens”. No mundo oriental onde Jesus viveu e morreu, “terra” era o nome dado a um forno que se fazia escavando um buraco no chão[1] (semelhante ao cozido das furnas, nos Açores) ou que se construía em barro (cfr. Job 28,5 e Sal 12,6). Esse forno, a “terra”, usava como combustível os excrementos bovinos. Ainda hoje, na Ásia (Índia, Nepal, etc), é comum ver “pastéis de bosta” às portas das casas que são usados como combustível para cozinhar ou aquecer a casa. Mesmo entre nós, nalgumas casas, consta-se que os mesmos excrementos bovinos eram usados para selar a porta de madeira nos fornos de pão. Para manter os excrementos em chama, usavam-se placas de sal ou sal solto. Quando o sal ficava “queimado”, não tinha nenhuma utilidade senão ser deitado nos caminhos para regularizar o terreno e amaciar os cortes provocados pelas pedras da estrada. De facto, queimar o sal é a única forma de o inutilizar pois o sal é um dos cinco alimentos que não tem prazo de validade.
                Portanto, as palavras de Jesus “Vós sois o sal da terra” são palavras incendiárias. Querem recordar aos discípulos a sua missão de espalhar o fogo sobre o qual Jesus disse: “Eu vim trazer o fogo à terra e que quero eu senão que ele se acenda?” (Lc 12,49). Se os discípulos são sal que não presta como catalisador… não servem para nada senão para ser deitados fora.
                A imagem do sal enquanto fogo casa bem com a imagem da luz: “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa”. O sal acende o fogo, o fogo aquece e dá luz. Aos discípulos não se pede menos do que isto.
                Mas, atenção, a questão do testemunho é muito delicada. Às vezes, ouvir certos cristãos “a dar testemunho” provoca grande tristeza. Porque pensam que dar testemunho é relatar as suas boas obras, os seus actos de piedade e generosidade, o seu “amor a Deus e ao próximo”. Dar testemunho é ser como Cristo, é ser cristão. É levantar perguntas e suscitar inquietações: “Porquê…?”. Pelo testemunho, o outro deve ser convidado e deve poder encontrar a Deus, não ao que dá testemunho. As palavras de Jesus são muitos claras: “Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus”. O testemunho deve ser como um espelho no qual os outros podem ver… a Deus, não ao cristão. A glória é para Deus, não para os homens.

P. Pablo Lima

In Notícias de Viana (1925), 06 de Fevereiro de 2020, p. 7.




[1] Bruce Malina, Social-Science Commentary on the Synoptic Gospels, p. 41.

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