quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Não podes fazer branco ou preto um só cabelo

VI Domingo do Tempo Comum – A
16 de Fevereiro de 2020
Sir 15, 16-21; Sal 118; 1 Cor 2, 6-10; Mt 5, 17-37


   Na era dos implantes de cabelo na Turquia a preços reduzidos…, resulta estranha a afirmação de Jesus de que não é possível alterar a cor do cabelo. Vivemos no tempo da engenharia biomédica, da genética, das intervenções cirúrgicas, da ciência prostética, para não falar do imenso campo das operações plásticas. Graças a Deus, a medicina evoluiu para promover, melhorar e prolongar a vida e a sua qualidade. Porém, tudo isto tornou-nos um pouco superficiais quanto aos limites da nossa acção transformadora da vida e do próprio corpo.
   Obviamente Jesus não se referia a uma alteração pontual da aparência. Referia-se a algo mais profundo: à nossa frequente incapacidade (e, tantas vezes, absoluta) de controlar os acontecimentos à nossa volta. Por isso, a nossa vida de reger-se por uma ética de respeito ao próximo e a si mesmo que exige o abandono até dos juramentos mesmo verdadeiros (houve tempos em que os cristãos se recusavam a assumir profissões, por exemplo, a vida militar, que exigem um juramento. Veja-se com proveito a lindíssima parábola de possível leitura cristológica de Terrence Malick “Uma vida escondida”, ainda nalgumas salas de cinema, premiado em Cannes, mas que não mereceu um Óscar…). E a lista prossegue em ascensão, após o abandono dos juramentos, com a verticalidade do discurso “sim, sim; não, não”; a recusa do repúdio/divórcio “salvo em caso de união ilegítima, comete adultério”; a castidade que exige grande esforço e luta “se o teu olho é ocasião de pecado, arranca-o”; a prioridade da reconciliação fraterna face ao culto “deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te”; e, sobretudo, o respeito absoluto pela vida, própria e alheia, indo muito além da proibição do homicídio para chegar à proibição da ira e do insulto “todo aquele que se irar ou chamar imbecil ao seu irmão será submetido a julgamento”.
   Não há dúvida de que a moral de Jesus é exigente: “se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus”. Mas os escribas e fariseus eram zelosíssimos! Observavam com minúcia cada artigo da lei e suas possíveis derivações. E esse era mesmo o seu erro. Não viam a “big picture” da Lei do amor que é o critério absoluto de interpretação e aplicação de toda lei. A fria, calculista e absoluta observância da lei pode servir para espezinhar e cilindrar o próximo. Já o sabiam os romanos: summus ius, summa iniuria. Para além disto, a lei não obriga nunca a actos de heroísmo ou sacrifício a benefício de outrem. O amor não se pode impor ou legislar. Mas é ele que nos salva.
   No momento em que se discute em Portugal a possível despenalização da eutanásia e do suicídio assistido, é preciso ter os olhos bem abertos e assumir uma postura a favor da vida, do amor, do respeito, da compaixão, optando claramente pelo cuidado dos doentes e das pessoas em sofrimento e dizendo um não claro e forte a qualquer forma velada de homicídio. Felizmente alguns cidadãos e alguns hierarcas, talvez por arrasto, estão a pronunciar-se publicamente pelo não à eutanásia e está em curso uma recolha de assinaturas para exigir um referendo. Do Livro do Eclesiástico: “diante do homem estão a vida e a morte: o que ele escolher, isso lhe será dado” (15,18).

P. Pablo Lima

O texto integral desta reflexão pode ser lido em: http://a-biblica-quadratura-do-circulo.blogspot.com/

In Notícias de Viana (1926), 13 de Fevereiro de 2020, p. 7.

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