I Domingo da Quaresma – A
01 de Março de 2020
Gen 2,7-9; 3,1-7; Sal 50; Rom 5, 12-19; Mt 4, 1-11
01 de Março de 2020
Gen 2,7-9; 3,1-7; Sal 50; Rom 5, 12-19; Mt 4, 1-11
"A persistência da memória", Salvador Dalí, 1931
Na Bíblia, ouvem-se muitas vozes: a
voz de Deus, muitas vozes humanas e, finalmente, a voz do tentador, o separador
ou cismático (é isso que significa dia-bolos, aquele que separa). Jesus
chama-lhe, em Jo 8,44, “mentiroso e pai da mentira”. De tal forma que todas as
vezes que abre a boca na Bíblia, o diabo mente. São essas as mentiras que
aperecem na Bíblia. E, delas, a primeira leitura, retirada da terceira página
da Bíblia, Gn 3, está cheia. A primeira vez que o diabo aparece em cena, começa
logo a mentir.
O relato diz que Deus formou “Adam”
ou Adão (não o “homem”, como diz a tradução litúrgica). “Adam” vem da “Adamah”
(terra), da mesma forma que “humano” vem de “húmus”. E em Adam Deus insuflou o “sopro
da vida”, a condição pensante, o desejo do eterno. E plantou-o num jardim. Entretanto
surge a serpente que começa a falar com a mulher (“ishah”, fêmea). Como é típico
dos manipuladores, abre o discurso com “é verdade que…?” e avança com o exagero
“não podeis comer de nenhuma árvore”. Com os mentirosos e manipuladores, é
melhor nem falar. Ao dar-lhe conversa, a mulher caiu logo no seu jogo e também ela
mentiu ao afirmar que Deus, a propósito da árvore do conhecimento do bem e do
mal, lhes proibira de comê-la e até tocá-la. Quanto ao toque, Deus nada tinha
dito: é invenção da mulher. A serpente insinua que é por egoísmo que Deus não quer
que provem da árvore do conhecimento do bem e do mal e a mulher e o seu homem (“ish”,
varão) caem e comem. Esta metáfora nada tem de sexual, como em tempos se
interpretou. A árvore representa a experiência de fazer o mal. O bem (através
de todos os dons do Criador) já o homem e a mulher o conheciam; era o mal, a
dor, o pecado… que lhes faltava conhecer e isso quiseram experimentar. O resultado
é que se tornaram como a serpente. Dela, tinha-nos sido dito que era o mais “astucioso”
(em hebraico, “arum”, que significa também nu) dos animais; após conhecer o
mal, o homem e a mulher descobriram-se como estando “erumîm”, isto é, nus, astuciosos
como a serpente… A nudez representa a fragilidade física, mental, moral,
espiritual exposta à maldade alheia.
O tentador, a velha serpente, volta
desta vez com três tentações que abrangem toda a vida humana: o ter (o
pão), o prazer (o salto) e o poder (os reinos). “A
morte e a vida travaram um admirável combate” (Sequência do Domingo de Páscoa),
o diabo e Jesus enfrentam-se no deserto. Quem já passou uma noite no deserto
sabe que é a terra do nada e de ninguém, a terra do silêncio que amplifica o
mais insignificante som e o transforma num ruído assustador. E é nesse contexto
que Jesus vence cada uma das tentações fincando-se na Palavra do Pai “está
escrito”. É curioso que o diabo se acomoda à natureza de cada um e, no caso de
Cristo, até as Sagradas Escrituras citou para O tentar. Mas Jesus vence-o pela força
da sua comunhão com o Pai, intensificada nos quarenta dias de oração e jejum. De
facto, só podemos vencer as tentações pela oração.
Tudo isto aconteceu “num monte muito
alto” (Mt 4,8). Dentro de uma semana, meditaremos a Transfiguração do Senhor “num
monte muito alto” (Mt 17,1). Os mesmos locais no nosso dia-a-dia podem ser palco
de acontecimentos divinos ou diabólicos. Depende de nós. Podemos viver de modo
a atrair anjos ou diabos. De facto, anjos vêm, anjos vão. No livro do Génesis
(4,24), após o pecado de Adão e Eva e da sua expulsão, Deus colocou os anjos
(querubins) a guardar a entrada do Jardim. No evangelho (Mt 4,11), os anjos voltaram
e “aproximaram-se e serviram-n’O”, a Jesus, o “Adam obediente”. É significativo:
“aproximar-se e servir” são verbos angelicais…
A primeira leitura apresentou-nos um
fracasso, a derrota da humanidade em viver em paz e comunhão entre si e com
Deus. Mas, felizmente, o Evangelho mostrou-nos o volta-face, uma vitória, sobre
a mesma serpente, por parte do “novo Adão”, Cristo. De facto, afirma São Paulo:
“assim como, pelo pecado de um só, Adão, muitos pereceram, com muita mais razão
a graça de Deus, num só homem, Jesus Cristo, é concedida a todos os homens com
abundância” (Rm 5,15). E, por isso, escreveu magistralmente Santo Agostinho: “Cristo
tomou de ti a sua tentação e de Si (toma) a tua vitória”.
P. Pablo Lima
In
Notícias de Viana (1928), 27 de Fevereiro de 2020, p. 7.
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