sábado, 7 de março de 2020

Não há tempo para campismo

II Domingo da Quaresma – A
08 de Março de 2020
Gen 12,1-4a; Sal 32; 2 Tim 1,8b-10; Mt 17,1-9
Monte Evereste, 2019

    Metamorfose. Para a maior parte de nós, este termo recorda o pequeno e denso conto do judeu austríaco Franz Kafka, no qual relata a “transfiguração” de Gregor Samsa num bicho asqueroso, num insecto repugnante cuja única similitude com um ser humano é que ainda apreciava a irmã a tocar violino…, prazer esse que o levará à morte. “Metamorfose” é o mesmo termo que aparece no evangelho para referir-se à transformação de Jesus, cujo rosto “brilhou como o sol e as vestes tornaram-se brancas como a luz”. O evangelho apresenta-nos a divinização da pessoa humana; Kafka metaforiza sobre a bestialização do ser humano.
    A experiência do “alto monte” como lhe chama Mateus (17,1) ficou bem gravada no coração de Pedro que a recorda na sua carta (2 Pd 1,17-18), com estas palavras (que, curiosamente, não aparecem no Domingo da Transfiguração em nenhum ano…): “Ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando da suprema glória lhe foi dirigida a voz que disse: ‘Este é o meu filho amado, em quem me agrado’. Nós mesmos ouvimos essa voz vinda do céu, quando estávamos com Ele no monte santo”. Certamente deve ter sido inesquecível presenciar a glória divina de Jesus na sua condição corporal e mortal. Esse foi, sem sombra de dúvidas, um dia luminoso na vida dos três discípulos preferidos de Jesus. Mateus, ao contrário de Lucas (9,33), não afirma que “Pedro não sabia o que estava a dizer” quando exclamou: “Senhor, como é bom estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tabernáculos: uma para ti, outra para Moisés e outras para Elias” (Mt 17,4). No entender de Mateus, Pedro sabia muito bem o que estava a dizer! Sabia que teria sido bom/belo (kalón) ficar no alto do monte, naquela manifestação extraordinária. E teria sido bom parar o tempo e “enclausurar” Deus novamente numa tenda ou tabernáculo (skená) como no Antigo Testamento, no deserto ou no templo, e deixá-l’O lá no alto.
    A tentação de Pedro é também a nossa: pararmos nos momentos luminosos, cravar as espias da tenda no chão e ficar lá. Ver o rosto de Deus apenas quando está luminoso; não ver o rosto de Deus desfigurado (como no relato de Kafka) na cruz, a propósito do qual já o Antigo Testamento tinha profetizado que “parece um bicho e não um homem (…) de rosto desfigurado (…) diante do qual se vira a cara” (Sl 22,6; Is 52,14; 53,2). E, sobretudo, não caminhar. Mas o nosso pai na fé é Abraão (figura que aparece nos três anos na primeira leitura), a quem Deus ordenou: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te indicar” (Gn 12,1). A expressão hebraica do vai “lek-lekah” é um imperativo enfático raríssimo e de difícil explicação. Alguns consideram que é um imperativo “de benefício”, vai para teu próprio bem. Abraão tem de sair da comodidade do seu mundo para viver a aventura de Deus. Não pode parar, não podemos parar.
    É muito interessante o dramático relato do alpinista português João Garcia sobre a sua escalada do Evereste em 1999. Foi o primeiro português a lá chegar sem garrafa de oxigénio. A lá chegar e de lá voltar. Aliás, como ele próprio relata no seu livro “A mais alta solidão”, os caminhos dos Himalaias estão semeados de cadáveres congelados que ninguém ousa tentar remover. É ele quem nos explica que “a grandes altitudes, perde-se o raciocínio” e apetece lá ficar, só um bocadinho. Mas esse bocadinho é mortal. “Chegar lá acima não é o fim da história, é preciso voltar. Vitória não é atingir o cume, mas regressar cá abaixo são e salvo”. Vitória é subir a montanha, presenciar o rosto de Deus, e voltar ao lusco-fusco do dia-a-dia.

P. Pablo Lima

O texto integral desta reflexão pode ser lido em: http://a-biblica-quadratura-do-circulo.blogspot.com/

In Notícias de Viana (1928), 05 de Março de 2020, p. 7.

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