III
Domingo da Quaresma – A
15 de Março
de 2020
Ex 17, 3-7; Sal 94
(95); Rom 5, 1-2. 5-8; Jo 4, 5-42
Jesus apaixonado
Sob pena de ofender algumas
personalidades mais sensíveis, confesso aqui o meu gosto pelo Fado de Coimbra conhecido
como “Samaritana”. Por vezes, os artistas profanos, sem nenhuma intenção
religiosa, apreendem melhor o pano de fundo de certos relatos evangélicos do
que muitos pregadores. E compõem peças mais significativas do que muitas
composições sacras e litúrgicas, que são como água esterilizada. Obviamente
fazem-me sorrir as efabulações do fado sobre o beijo, o rubor de Jesus e a
palidez da mulher. Mas lamento que as tunas universitárias hoje nem sequer
sintam o apelo de “provocar” a Igreja e os crentes com esta música… Tantas
vezes ficam-se por brejeirices desinteressantes. E a “religião” já nem é tema
para muitos estudantes.
O fado colhe muito bem o contexto
prónubo e esponsal do relato joanino. No Antigo Testamento, os poços não eram
preciosos apenas por causa da água (motivos de guerras em Gn 26,15; 2 Sm 23,16),
mas também porque eram locais de convívio e, no imaginário e tradição popular,
eram o local por excelência para arranjar namoro (como entre nós, há poucos
anos, as fontes da aldeia ou as janelas com os bancos chamados “namoradeiras”).
Pensemos que personagens tão distintas como Isaac (Gn 24,11), Jacob (Gn 29,10)
e Moisés (Ex 2,15) arranjaram as suas esposas junto a um poço. Precisamente no
poço de “Jacob” encontram-se Jesus e a Samaritana.
É por volta do meio-dia que a mulher
vem à fonte. À hora mais quente do dia ninguém vai à fonte. Ninguém, excepto
quem não quer ser visto, quem evita encontrar-se com outras pessoas. Divino
azar: estava lá alguém; perdão, Alguém, com “A” maiúsculo. E esse divino Alguém
fala com ela e até lhe pede de beber. O ódio entre samaritanos (habitantes da
Samaria) e judeus (habitantes de Judá; samaritanos e judeus tinham a mesma
religião hebraica ainda que os de Judá consideram-se os da Samaria como pagãos)
começara no ano 128 a.C. quando o rei judeu João Hircano destruiu o templo
samaritano de Betel, construído por Jacob, por considera-lo ilegítimo e
concorrente ao templo de Jerusalém. Ainda hoje os samaritanos (que ainda
existem, ainda que sejam uma minoria) rezam e celebram a sua fé nesse monte,
junto às ruínas antigas, perto do local onde Jesus e a Samaritana se
encontraram.
O aparente mal-entendido sobre a
água: “dá-me de beber”, “se soubesses quem sou, pedias-me tu a mim”, “nem
sequer tens um balde”, “eu te daria água viva”, “dá-me dessa água”… é uma
catequese cristológica e joanina sobre a vida nova, a efusão do Espírito Santo
(comparado e simbolizado aqui e no evangelho de João pela água que sai do lado
de Cristo, por ex., em Jo 19,34) e o Baptismo (que continuará nos próximos
Domingos). Aquela conversa iniciada com uma simples petição de água, depressa
se transforma num diálogo profundo em que Jesus convida aquela mulher à
conversão, recordando-lhe os “cinco maridos” que teve e a relação ilegítima em
que se encontrava. Os “cinco maridos” são provavelmente os Cinco Livros da Lei
(Génesis a Deuteronómio) que os samaritanos interpretavam erradamente (novo
marido). E, nesse poço, nessa troca de palavras em que depressa se passa de
maridos a profetas, da adoração ao Messias que já está aqui, Jesus passará a
ser o Novo Esposo da Humanidade, daquela Samaritana e de toda a sua aldeia. Não
se esqueça que João Baptista dizia não ser digno de desatar as sandálias dos
seus pés (Jo 1,27), gesto que o melhor amigo fazia ao esposo antes dele entrar
na tenda nupcial; que Jesus define os seus discípulos como “os amigos do
Esposo” (Lc 5,15) e o Apocalipse (19,7) fala-nos das “núpcias do Cordeiro”. Por
isso, é justo falar em Jesus apaixonado. Mas não esqueçamos que a paixão de Jesus
é amor e cruz.
P. Pablo Lima
In
Notícias de Viana (1929), 12 de Março de 2020, p. 7.
Uma sumptuosa homilia sobre uma das mais bonitas passagens bíblicas e a sua comparação com o Fado Coimbrã. Dos "Amores da Redenção"está a Humanidade faminta
ResponderEliminarObrigado, caro José! Boa semana!
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