domingo, 15 de março de 2020

Jesus apaixonado


III Domingo da Quaresma – A

15 de Março de 2020

Ex 17, 3-7; Sal 94 (95); Rom 5, 1-2. 5-8; Jo 4, 5-42



Jesus apaixonado



            Sob pena de ofender algumas personalidades mais sensíveis, confesso aqui o meu gosto pelo Fado de Coimbra conhecido como “Samaritana”. Por vezes, os artistas profanos, sem nenhuma intenção religiosa, apreendem melhor o pano de fundo de certos relatos evangélicos do que muitos pregadores. E compõem peças mais significativas do que muitas composições sacras e litúrgicas, que são como água esterilizada. Obviamente fazem-me sorrir as efabulações do fado sobre o beijo, o rubor de Jesus e a palidez da mulher. Mas lamento que as tunas universitárias hoje nem sequer sintam o apelo de “provocar” a Igreja e os crentes com esta música… Tantas vezes ficam-se por brejeirices desinteressantes. E a “religião” já nem é tema para muitos estudantes.

            O fado colhe muito bem o contexto prónubo e esponsal do relato joanino. No Antigo Testamento, os poços não eram preciosos apenas por causa da água (motivos de guerras em Gn 26,15; 2 Sm 23,16), mas também porque eram locais de convívio e, no imaginário e tradição popular, eram o local por excelência para arranjar namoro (como entre nós, há poucos anos, as fontes da aldeia ou as janelas com os bancos chamados “namoradeiras”). Pensemos que personagens tão distintas como Isaac (Gn 24,11), Jacob (Gn 29,10) e Moisés (Ex 2,15) arranjaram as suas esposas junto a um poço. Precisamente no poço de “Jacob” encontram-se Jesus e a Samaritana.

            É por volta do meio-dia que a mulher vem à fonte. À hora mais quente do dia ninguém vai à fonte. Ninguém, excepto quem não quer ser visto, quem evita encontrar-se com outras pessoas. Divino azar: estava lá alguém; perdão, Alguém, com “A” maiúsculo. E esse divino Alguém fala com ela e até lhe pede de beber. O ódio entre samaritanos (habitantes da Samaria) e judeus (habitantes de Judá; samaritanos e judeus tinham a mesma religião hebraica ainda que os de Judá consideram-se os da Samaria como pagãos) começara no ano 128 a.C. quando o rei judeu João Hircano destruiu o templo samaritano de Betel, construído por Jacob, por considera-lo ilegítimo e concorrente ao templo de Jerusalém. Ainda hoje os samaritanos (que ainda existem, ainda que sejam uma minoria) rezam e celebram a sua fé nesse monte, junto às ruínas antigas, perto do local onde Jesus e a Samaritana se encontraram.

            O aparente mal-entendido sobre a água: “dá-me de beber”, “se soubesses quem sou, pedias-me tu a mim”, “nem sequer tens um balde”, “eu te daria água viva”, “dá-me dessa água”… é uma catequese cristológica e joanina sobre a vida nova, a efusão do Espírito Santo (comparado e simbolizado aqui e no evangelho de João pela água que sai do lado de Cristo, por ex., em Jo 19,34) e o Baptismo (que continuará nos próximos Domingos). Aquela conversa iniciada com uma simples petição de água, depressa se transforma num diálogo profundo em que Jesus convida aquela mulher à conversão, recordando-lhe os “cinco maridos” que teve e a relação ilegítima em que se encontrava. Os “cinco maridos” são provavelmente os Cinco Livros da Lei (Génesis a Deuteronómio) que os samaritanos interpretavam erradamente (novo marido). E, nesse poço, nessa troca de palavras em que depressa se passa de maridos a profetas, da adoração ao Messias que já está aqui, Jesus passará a ser o Novo Esposo da Humanidade, daquela Samaritana e de toda a sua aldeia. Não se esqueça que João Baptista dizia não ser digno de desatar as sandálias dos seus pés (Jo 1,27), gesto que o melhor amigo fazia ao esposo antes dele entrar na tenda nupcial; que Jesus define os seus discípulos como “os amigos do Esposo” (Lc 5,15) e o Apocalipse (19,7) fala-nos das “núpcias do Cordeiro”. Por isso, é justo falar em Jesus apaixonado. Mas não esqueçamos que a paixão de Jesus é amor e cruz.



P. Pablo Lima


In Notícias de Viana (1929), 12 de Março de 2020, p. 7.

2 comentários:

  1. Uma sumptuosa homilia sobre uma das mais bonitas passagens bíblicas e a sua comparação com o Fado Coimbrã. Dos "Amores da Redenção"está a Humanidade faminta

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