IV
Domingo da Quaresma – A
22 de Março
de 2020
1 Sam 16, 1b. 6-7.
10-13a; Sal 22 (23); Ef 5, 8-14; Jo 9, 1-41
Pode encontrar estas leituras aqui
A expressão é do profeta Isaías, mas é
citada por São Paulo, em jeito de um refrão ou cântico que os cristãos
entoavam. O versículo recomposto de Isaías reza assim: “Desperta, tu que
dormes; levanta-te do meio dos mortos” (Is 26,19; 51,17; 60,1); e os cristãos
(ou São Paulo) acrescentaram “e Cristo brilhará sobre ti” (Ef 5,14c). O texto
chocou-me e ficou a dar voltas na minha cabeça ao ponto de abandonar a reflexão
que já tinha escrito. Obviamente impressionou-me pelo drama que estamos a viver
com a pandemia do Covid19. E não podemos ignorar a situação se queremos ser
fiéis hoje à Palavra de Deus que é de sempre.
Ainda que o despertar seja lento, a
maior parte da sociedade portuguesa já percebeu que a situação é gravíssima e,
em parte, estamos a viver a reclusão própria de um contexto de guerra. Ainda há
– sempre houve e haverá – pessoas imprudentes que passeiam pelas ruas em grupo, andam a
ver montras e vão aos centros de saúde para tratar de unhas encravadas. Ainda
há – sempre houve e haverá – hierarcas da Igreja que gostam de agir “com
prudência” e “evitar o alarmismo” e nos colocam na vergonhosa situação de ser
proibidos pela autoridade civil de organizar celebrações, para então darem
orientações de que não será possível presidir a liturgias públicas. Já lá vão
os tempos em que a Igreja vivia a parresia ou ousadia/coragem de que
fala o Livro dos Actos dos Apóstolos e marcava o ritmo da sociedade e do mundo.
Hoje vamos atrás, da pior forma.
Encontramo-nos, pois, numa realidade
“sempre nova e sempre antiga”, como diria Santo Agostinho. De uma hora para a
outra, tivemos que ficar em casa; as crianças deixaram de ir à escola; as
compras reduzem-se aos bens alimentares e produtos higiénicos; não podemos ir
visitar os nossos pais, porque têm idade avançada e podemos infectá-los.
Primeiro, disseram que era por quinze dias; depois, até à Páscoa; agora
pensa-se que o “pico” pode ser para fins de Maio. A situação não vai mudar tão
depressa. Depois do choque inicial e dos 14 dias de isolamento preventivo, as
rotinas voltarão muito lentamente, com equipas alternadas, notícias de que esta
ou aquela pessoa conhecida, próxima ou familiar está grave… Aqueles -leigos e
padres- cujo exibicionismo engordou no facebook durante estes dias, terão mais
likes e “seguidores”. Uma parte do comércio local, de pequenas e médias
empresas, irá fechar de vez e os grandes hipermercados irão ressuscitar ainda
com mais força. Enquanto uns choram, outros vendem lenços de papel e ganham
fortunas. As multinacionais irão recuperar e iremos novamente prestar culto nos
santuários e capelas das grandes superfícies, nos seus amplos corredores, e, já
agora, aprofundaremos a nossa relação com as compras online. Mas a vida não vai
parar.
Andam muitos a pregar que este é um
tempo favorável para a introspecção, para a vida familiar, para a leitura e a
oração. É mesmo. É ainda tempo para darmos conta que, afinal, a vida pode ser
muito simples. Que conseguimos viver (e não só sobreviver) com muito menos; que
gastar os anos a acumular bens e a melhorar a “qualidade de vida” exterior,
pode não ser um êxito, mas um fracasso humano; que, deste mundo, levamos pouco,
quase nada, um fato e um par de sapatos, e essa é a única diferença com a hora
em que aqui chegámos.
Cegueira física ou espiritual? No
evangelho, Jesus cura um homem de nascença e, com esse gesto, descobre-se que,
à sua volta, os outros estavam ainda mais cegos do que ele sobre a vida, sobre
Deus e o seu Messias (Cristo, “Siloé” significa também “Ungido”). Jesus conclui
dizendo: “Eu vim para exercer um juízo: os que não vêem ficarão a ver e os que
vêem ficarão cegos”. Nas próximas horas, dias, semanas… vamos ver e deixar de
ver muito e muitos. Por isso, cantava São Paulo: “desperta, tu que dormes…”.
P. Pablo Lima
In Notícias de
Viana (1930), 19 de Março de 2020, p. 7.
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