sábado, 21 de março de 2020

Desperta, tu que dormes..


IV Domingo da Quaresma – A
22 de Março de 2020
1 Sam 16, 1b. 6-7. 10-13a; Sal 22 (23); Ef 5, 8-14; Jo 9, 1-41
Pode encontrar estas leituras aqui



            A expressão é do profeta Isaías, mas é citada por São Paulo, em jeito de um refrão ou cântico que os cristãos entoavam. O versículo recomposto de Isaías reza assim: “Desperta, tu que dormes; levanta-te do meio dos mortos” (Is 26,19; 51,17; 60,1); e os cristãos (ou São Paulo) acrescentaram “e Cristo brilhará sobre ti” (Ef 5,14c). O texto chocou-me e ficou a dar voltas na minha cabeça ao ponto de abandonar a reflexão que já tinha escrito. Obviamente impressionou-me pelo drama que estamos a viver com a pandemia do Covid19. E não podemos ignorar a situação se queremos ser fiéis hoje à Palavra de Deus que é de sempre.
            Ainda que o despertar seja lento, a maior parte da sociedade portuguesa já percebeu que a situação é gravíssima e, em parte, estamos a viver a reclusão própria de um contexto de guerra. Ainda há – sempre houve e haverá – pessoas imprudentes que passeiam pelas ruas em grupo, andam a ver montras e vão aos centros de saúde para tratar de unhas encravadas. Ainda há – sempre houve e haverá – hierarcas da Igreja que gostam de agir “com prudência” e “evitar o alarmismo” e nos colocam na vergonhosa situação de ser proibidos pela autoridade civil de organizar celebrações, para então darem orientações de que não será possível presidir a liturgias públicas. Já lá vão os tempos em que a Igreja vivia a parresia ou ousadia/coragem de que fala o Livro dos Actos dos Apóstolos e marcava o ritmo da sociedade e do mundo. Hoje vamos atrás, da pior forma.
            Encontramo-nos, pois, numa realidade “sempre nova e sempre antiga”, como diria Santo Agostinho. De uma hora para a outra, tivemos que ficar em casa; as crianças deixaram de ir à escola; as compras reduzem-se aos bens alimentares e produtos higiénicos; não podemos ir visitar os nossos pais, porque têm idade avançada e podemos infectá-los. Primeiro, disseram que era por quinze dias; depois, até à Páscoa; agora pensa-se que o “pico” pode ser para fins de Maio. A situação não vai mudar tão depressa. Depois do choque inicial e dos 14 dias de isolamento preventivo, as rotinas voltarão muito lentamente, com equipas alternadas, notícias de que esta ou aquela pessoa conhecida, próxima ou familiar está grave… Aqueles -leigos e padres- cujo exibicionismo engordou no facebook durante estes dias, terão mais likes e “seguidores”. Uma parte do comércio local, de pequenas e médias empresas, irá fechar de vez e os grandes hipermercados irão ressuscitar ainda com mais força. Enquanto uns choram, outros vendem lenços de papel e ganham fortunas. As multinacionais irão recuperar e iremos novamente prestar culto nos santuários e capelas das grandes superfícies, nos seus amplos corredores, e, já agora, aprofundaremos a nossa relação com as compras online. Mas a vida não vai parar.
            Andam muitos a pregar que este é um tempo favorável para a introspecção, para a vida familiar, para a leitura e a oração. É mesmo. É ainda tempo para darmos conta que, afinal, a vida pode ser muito simples. Que conseguimos viver (e não só sobreviver) com muito menos; que gastar os anos a acumular bens e a melhorar a “qualidade de vida” exterior, pode não ser um êxito, mas um fracasso humano; que, deste mundo, levamos pouco, quase nada, um fato e um par de sapatos, e essa é a única diferença com a hora em que aqui chegámos.
            Cegueira física ou espiritual? No evangelho, Jesus cura um homem de nascença e, com esse gesto, descobre-se que, à sua volta, os outros estavam ainda mais cegos do que ele sobre a vida, sobre Deus e o seu Messias (Cristo, “Siloé” significa também “Ungido”). Jesus conclui dizendo: “Eu vim para exercer um juízo: os que não vêem ficarão a ver e os que vêem ficarão cegos”. Nas próximas horas, dias, semanas… vamos ver e deixar de ver muito e muitos. Por isso, cantava São Paulo: “desperta, tu que dormes…”.

P. Pablo Lima

In Notícias de Viana (1930), 19 de Março de 2020, p. 7.

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