sexta-feira, 27 de março de 2020

Essa doença não é mortal


V Domingo da Quaresma – A
29 de Março de 2020
Ez 37, 12-14; Sal 129 (130); Rm 8,8-11; Jo 11, 1-45
Pode encontrar estas leituras aqui


A ressurreição de Lázaro, Vincent Van Gogh (1890), Amsterdão

            Há muito tempo que a leitura da Palavra de Deus não nos feria tão profundamente a nível colectivo. Certamente que, a nível individual, fá-lo continuamente. Mas a nível comunitário, social e eclesial, adquire nestes dias uma pertinência que nos fere. Fez-me recordar quando, em Novembro de 2012, na capela do Instituto Bíblico em Jerusalém, rezávamos o salmo 122 “pedi a paz para Jerusalém” e, de repente, começou a tocar a sirene anti-aérea e fomos a correr para o sótão, enquanto acontecia a troca de rockets entre Israel e a Faixa de Gaza.
            Nestes dias somos atacados por outros mísseis, invisíveis, mas não menos mortíferos, até porque à escala global. Não sejamos hipócritas, porque grande parte desta “guerra” não é por causa das pessoas, mas das finanças e a economia. Numa “guerra” tradicional, morrem mais jovens adultos e menos idosos que não vão ao combate; neste caso, é ao contrário. O Presidente dos EUA já disse que, depois da Páscoa, irá reabrir a economia e o governador do Texas, Dan Patrick, sugeriu que os avós como ele, “estão dispostos a morrer para salvar a economia a favor dos seus netos”… Felizmente o pessoal de saúde que está a lutar ao limite das forças e que foram os primeiros a dizer para ficarmos em casa…, recordam-nos que cada vida humana é sagrada e merece um esforço até ao segundo derradeiro. De repente, o governo já não fala da urgência em aprovar a eutanásia.
            Neste contexto terrível, chegamos ao V Domingo da Quaresma com o relato da doença, morte e ressurreição de Lázaro. É um texto cheio de questões, de frases e gestos enigmáticos da parte de Jesus. Lázaro, Marta e Maria eram uma família à qual Jesus recorria com frequência. A sua casa ficava pouco atrás do Monte das Oliveiras; isto é, a 15 minutos a pé do Templo e do centro de Jerusalém. Era lá que Jesus ficava sempre que ia à cidade santa. Encontrando-se ainda longe de Betânia, Jesus foi avisado da gravidade do estado em que se encontrava Lázaro. Mas não foi imediatamente ter com ele, ficou ainda dois dias no local e demorou outros dois a lá chegar. Ele tinha respondido a quem lhe deu a notícia: “Essa doença não é mortal, mas é para glória de Deus, para que por ela seja glorificado o Filho do Homem” (Jo 11,4). Mortal, foi; ainda que não definitiva. E, quando Jesus finalmente chega, Lázaro já estava enterrado há quatro dias.
            Na lógica do Evangelho de João, Jesus é omnisciente e, por isso, consente que Lázaro morra, porque a sua ressurreição seria um “sinal” (Semeion, em grego; não “milagre”, como traduz a tradução litúrgica em uso) do poder e divindade do Filho de Deus, a favor da fé dos discípulos. Quando Marta repreende Jesus pelo seu atraso mortal, Jesus responde-lhe (Jo 11,26): “EU SOU (nome de Deus no AT) a ressurreição e a vida; quem acredita em mim, ainda que morra, viverá; e todo aquele que vive e acredita em mim, jamais morrerá para sempre” (a errada tradução litúrgica em uso coloca “nunca morrerá”). Jesus refere-se, então, àquilo que o Apocalipse chama a “segunda morte” (Ap 2,11; 20,6), para além da morte física, que é inevitável, mas não definitiva. É a “segunda morte” ou afastamento definitivo de Deus e dos outros que mais devemos temer e evitar.
            O versículo 33 afirma que a reacção de Jesus ao ver Marta e os judeus a chorar foi: “enebrimésato to pnéumati kai etáraxen”, traduzido habitualmente como “comoveu-se profundamente e ficou perturbado”. Mas o verbo embrimáomai significa não “comoveu-se”, mas “ficou enfurecido” ou, pelo menos, “revoltado”. É esta a primeira reacção de toda pessoa diante da morte: uma raiva impotente, seguida de comoção, tristeza, pranto. É assim que Jesus reage com a morte, numa luta corpo a corpo, para vencê-la já neste mundo e, finalmente, “no mundo que há-de vir” – como rezamos no Credo. Jesus actualiza o que o nome de Lázaro significa: “Deus é a minha ajuda”. Deus é a nossa ajuda, nesta hora difícil, em todas as horas.

P. Pablo Lima


In Notícias de Viana (1931), 26 de Março de 2020, p. 7.

Ps. Lázaro está canonizado na Igreja Católica e a sua festa celebra-se a 29 de Julho, junto com santa Marta e santa Maria, os tres irmãos de Betânia. A centralidade de Lázaro na literatura universal é impressionante. Recordo apenas “A última tentação de Cristo” de Nikos Kazantzakis, no qual Lázaro acaba assassinado por Barrabás e o recente “Evangelho segundo Lázaro” (2018) do autor judeu americano, mas nacionalizado português, Richard Zimler, que fabuliza Jesus e Lázaro como amigos de infância.
Após a “reanimação” de Lázaro (termo que é mais apropriado, pois Lázaro voltou a morrer e a “ressurreição” liberta da morte para sempre), o Sinédrio decidiu-se pela morte de Jesus (Jo 11,45-57). Em agradecimento pela vida do seu irmão, Maria ungiu os pés de Jesus (12,3) e Ele interpretou o gesto como uma “preparação para a sua sepultura” (v.7). E assim foi, porque, no dia seguinte, Jesus entrou triunfal em Jerusalém – como celebraremos sobriamente no Domingo de Ramos – e, alguns dias depois, foi morto e sepultado.

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