quarta-feira, 1 de abril de 2020

Uma palavra de alento


Domingo de Ramos na Paixão do Senhor
05 de Abril de 2020
Is 50,4-7; Sal 21 (22); Flp 2,6-11; Mt 26,14–27,66

Uma palavra de alento


            Aconteceu-me no meu primeiro ano de padre, durante o solene evangelho do Domingo de Ramos. A atmosfera é séria: os acólitos, os leitores a cada lado do Altar, o silêncio reverente, toda a gente de pé… o padre no centro do Altar a ler as palavras de Jesus. Chegado o relato das diligências para a escolha do local, os discípulos vão perguntar ao Mestre onde quer que façam os preparativos para a ceia. O leitor teve um pequeno lapsus linguae, motivado talvez pela hora avançada, já perto do almoço, e leu: “Mestre, onde queres que façamos os “aperitivos” para a Páscoa?”! Tive de morder a língua e os lábios, mas os acólitos foram os primeiros a notar, não só na minha voz, mas na expressão do rosto, que estava a esforçar-me por não rir descontroladamente.
            A Igreja chama a este Domingo “de Ramos na Paixão do Senhor”. Isto significa que celebramos a entrada triunfal de Cristo em Jerusalém, mas esse evento festivo é ensombrado pela iminência da paixão e morte de Jesus. O longo evangelho “da paixão” dá o tom para toda a semana: é isto que vamos celebrar, uma entrega por amor.
            O evangelho de Mateus (cap. 26) que meditamos neste ano tem duas linhas de fundo em todo o relato, resumidas no versículo 56: «mas tudo isto aconteceu para que se cumpram as escrituras dos profetas. Então, todos os discípulos, deixando-o, fugiram». Por outras palavras, Mateus sublinha que a paixão é assumida voluntariamente por Jesus, realizando com amor a redenção da humanidade, provando pela sua vida e pela sua morte que era Ele o esperado do povo de Israel, o Messias que veio para instaurar a paz e o amor, não a violência e o ódio. E, ainda, sublinha que, naquela vez, os discípulos não estiveram à altura do Mestre, traíram-n’O e abandonaram-n0’O. Para nós, isto serve de consolo e de provocação. De consolo, porque até aqueles que conviveram com Jesus e assistiram aos seus milagres, falharam; de provocação, porque termos falhado nessa vez, não significa que agora não possamos fazer de forma diferente.
            A espiritualidade barroca singrou, sobretudo, nos países da Europa ocidental. Em certa medida, a espiritualidade barroca casou muito bem com o jansenismo latente, e deu origem às colossais tribunas eucarísticas nos retábulos, ao gradeamento do altar em muitas catedrais e à balaustrada do altar em muitas paróquias. E encheu de crucifixos ensanguentados as nossas casas, igrejas e praças. Até aí, a imagem do Crucificado era sobretudo gloriosa, solene, em majestade. De facto, a contemplação da paixão de Cristo não é para inspirar em nós (sobretudo) sentimentos de pena e choque pelo seu sofrimento físico, mas de gratidão pelo seu amor que o levou a tudo suportar por nós. A Paixão de Cristo deve mover-nos a amar como Ele amou e a servir como Ele serviu. A Paixão de Cristo não é para uma meditação ensimesmada e privatizada, mas para acender em nós o fogo do seu amor. A Paixão de Cristo não é para desanimar, mas para encorajar e dar forças na nossa paixão.
            De modo particular, a Semana Santa que este ano vivemos mais ou menos encerrados em casa será talvez a primeira vez na nossa vida em que poderemos rezar mais e melhor em cada dia. E assim, poderemos aumentar em nós o desejo de, nos anos vindouros, tirarmos férias na Semana Santa, não para ir passear, mas para participar em todo o Tríduo Pascal (da quinta ao sábado) de corpo e alma. Este ano, só de alma, e já não é pouco.
            Que bonita a profecia de Isaías 50! Relata, sim, que “apresentei as costas aos que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba, insultavam e cuspiam” (v.6). Mas antes diz-nos o porquê de tudo isto: “para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos” (v.4).

P. Pablo Lima

In Notícias de Viana (1932), 01 de Abril de 2020, p. 7.

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