Cristo Crucificado-Ressuscitado, José Rodrigues, 1997
Capela do Seminário de Viana do Castelo (foto R.C.)
O dia do Senhor é o
Senhor dos dias
É
legítimo sentir nostalgia, tristeza ou saudade pela impossibilidade de
“celebrar a Páscoa” neste ano, dadas as terríveis circunstâncias que estamos a
viver. No entanto, este é um momento de delicada responsabilidade social e
cristã e a única atitude moralmente correcta é permanecer em casa e evitar o
contacto social, para travar o alastramento da pandemia. Já bastam os
profissionais de saúde, de segurança e outros obrigados a permanecer ao
serviço, com horários desumanos, para ajudar quem precisa, bem como
trabalhadores cujas ocupações são essenciais para evitar um colapso ainda maior
de bens e serviços.
Há
muita hipocrisia por aí, por parte de indivíduos e instituições, e não deixa de
provocar revolta ouvir as entrevistas e comentários em que se fala da “economia”
como uma super-estrutura independente das “pessoas”, que vale por si mesma e
que tem de ser salva a toda custa. A economia são as pessoas concretas, de
carne e osso, que verão os seus empregos e rendimentos coarctados por esta
terrível situação. E isso pode trazer situações diversas de fome e doença.
Todos – mesmo todos – teremos de corrigir o nosso conceito de “qualidade de
vida”, prescindir de certos luxos que, afinal talvez não trouxessem muita
qualidade…, de modo a garantir que as necessidades básicas serão satisfeitas e,
nessa medida, reaprender outros prazeres da vida simples. É curioso que autores
laicos como Matt Haig (“O mundo à beira de um ataque de nervos”), Alain de
Botton (“Status Ansiedade”) e Duane Elgin (“Simplicidade voluntária”), para
além dos activistas ambientais como a Greta Thunberg (“A nossa casa está a
arder”) nos alertem para a urgência de estilos de vida sustentáveis, que
estamos agora a praticar de forma forçada. Mais curioso ainda é que, ao
ensinar-nos novos paradigmas de consumo que se opõem ao coleccionismo e
açambarcamento de bens em ordem a uma maior fruição do que realmente já
temos, cunharam uma formulação laica de um princípio completamente evangélico,
“ter menos é ter mais”. Em inglês, para alguns, tem sempre outro charme: “less
is more”.
Com
estas premissas, é legítimo, mas também inútil, lamentarmos a constrição de
permanecer em casa durante a Páscoa. Compreendo o sofrimento dos cristãos, das
comunidades e seus pastores, por não poder celebrar o Domingo de Ramos e o
Santo Tríduo Pascal. Eu também sofro. Mas tenho dúvidas de que esta
multiplicação de missas online seja a atitude correcta. Agora, até à
segunda-feira há missa nalgumas paróquias… virtuais. Com pertinência, o bispo
espanhol de Teruel y Albarracín, António Gómez Cantero, não escreveu só a
explicar o quê e como celebrar, mas também a sugerir mais contenção nas redes
sociais por parte do seu presbitério. Obviamente há publicações e celebrações
de qualidade muito duvidosa. Além disso, as novas “missas do facebook” (com ou
sem “filtros” activos) promovem a mesma – ou pior – passividade litúrgica de
que nos queixámos nas paróquias. Pessoalmente creio que faz mais sentido que
uma família se reúna a ler a Bíblia, rezar as preces em conjunto e fazer um
momento de silêncio e comunhão espiritual com o ecrã desligado do
que a “assistir” aos enquadramentos forçados no telemóvel. Ou, então, que vejam
na tv.
Por
outro lado, se calhar, não há motivos para estar “tão” tristes por este ano não
celebrarmos a Páscoa comunitariamente. Daqui podem vir reflexões e mudanças que
todos desejávamos fazer, mas que não tínhamos nem coragem nem desculpas
legítimas para as pôr em prática.
1. A
data da Páscoa: intransferível?
Não é verdade. A data da
Páscoa não tem de ser monolítica. De facto, não é. Lamentavelmente, os cristãos
celebram a Páscoa em duas datas: o calendário gregoriano para a Igreja Católica
e igrejas protestantes e e o calendário juliano para as igrejas orientais e
ortodoxas. O resultado é que todos os anos os cristãos celebram a Páscoa em
dois domingos diferentes, que podem chegar a ter quinze dias de intervalo. Este
ano, por exemplo, os cristãos ortodoxos celebrarão o Domingo de Páscoa no dia
19 de Abril, uma semana depois dos católicos e protestantes. E, em Jerusalém, quantos
peregrinos que lá vão para celebrar a Semana Santa descobrem, ao chegar, que a
Vigília Pascal é de manhã e não à noite, porque ainda seguem o horário pré-conciliar
do status quo nos lugares santos?
Durante
os primeiros séculos, a data da Páscoa foi motivo de grandes controvérsias. Um
grupo de cristãos orientais, chamados quatordecimanos, celebravam a
Páscoa no dia catorze de Nisan, como os hebreus, quer fosse um Domingo ou um
dia da Semana. Para além destes, outro grupo, conhecido como os protopasquitas,
celebravam a Páscoa sempre no Domingo a seguir aos hebreus. Porém, como o
calendário judaico da época era bastante confuso, por vezes, estes grupos
celebravam a Páscoa um mês antes dos outros cristãos e mesmo antes do
equinócio. Por isso, o Concílio de Niceia (325 d.C.) prescreveu que a Páscoa fosse
celebrada no Domingo seguinte à primeira lua cheia da Primavera. Passando à
frente delicadas e complexas questões de calendário e contagem, importa
recordar que o mesmo Concílio de Niceia proibiu que a Páscoa cristã coincidisse
com a Páscoa hebraica. E isso obrigou a alguns reagendamentos durante alguns
anos… Finalmente, foram os mesmos judeus, já na Idade Média, que (nos)
resolveram o problema quando definiram que a Páscoa judaica só pode ser
celebrada nas segundas, terças, quintas e sábados. Por conseguinte, a data da
Páscoa, mesmo pretendendo sermos fiéis à cíclica celebração da Paixão e Morte
de Jesus, não tem de ser forçadamente numa única data.
Recordemos
que a autoridade apostólica (e científica, na época) do Papa Gregório XIII,
através da bula Inter gravíssimas, decretou que, no ano 1582, depois da
quinta-feira 4 de outubro, seria sexta-feira… 15 de outubro! E, dessa forma,
corrigiu um erro de dez dias no equinócio da Primavera. Portugal foi um dos
primeiros países a aderir à Reforma gregoriana, naquele mesmo ano. Mesmo sendo
certo que a mudança que o Papa pôs em curso não afectou a regularidade do
Domingo, chama-nos a atenção de que o calendário é uma realidade
convencional que pretende ajustar ou ordenar uma realidade
natural. Por conseguinte, é passível de melhorias e alterações. Em
jeito de provocação, fica esta pergunta sem resposta: enquanto a marcação dos
meses, semanas e dias pretende organizar os ciclos de rotação e translação da
Terra à volta do sol, a sequência dos dias da semana é apenas uma realidade
cumulativa ou tradicional. Isto é, este dia em que escrevo é quarta-feira
porque ontem foi terça-feira e, assim, de forma ascendente, até à perda da
memória colectiva. Pois é nessa perda da memória colectiva que fazemos um acto
de fé ao considerar que após séculos de invasões bárbaras e muçulmanas, de
guerras entres povos na Europa e no Oriente…, nunca se perdeu a perfeita
sequência dos dias, desde o Domingo da Ressurreição do Senhor. Portanto, é
possível que, em termos sequenciais e rigorosamente históricos, hoje não seja
quarta-feira e daqui por quatro dias não seja Domingo. Mas até pode ser que
sim.
Tendo
isto claro, este ano punha-se uma questão de ordem prática. É impossível
celebrar comunitariamente a Santa Vigília da Ressurreição. Seria possível
alterar a data. Mas não é possível saber quando seria seguro celebrar novamente
a Vigília. Portanto, na incerteza, mantém-se a data. Foi o que Roma fez pela
mão do Cardeal Sarah. Roma locuta, causa soluta. Mas Roma tinha a
legitimidade de decidir doutro jeito, ao contrário do que escreveu o cardeal
Sarah, mas, simplesmente, não era oportuno reagendar a Páscoa. Por outras
palavras, não estejamos particularmente tristes por pensar que só na noite de
11 de Abril é que o Senhor ressuscitou. Além disso, e se as circunstâncias o
permitirem, grande parte da Vigília Pascal pode ser celebrada na Vigília de
Pentecostes; ou mesmo por altura do Corpus Christi, etc…
No
judaísmo rabínico (o único que sobreviveu dos muitos judaísmos do tempo de
Jesus à data da destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C.), a Páscoa é
uma celebração familiar, é uma liturgia doméstica. O principal rito (ou sacramento,
se esta palavra nos chamar ainda mais a atenção) do judaísmo não é celebrado na
sinagoga, mas em casa. E a Igreja, que nasceu sob perseguição e sem edifícios de
culto, reuniu-se durante séculos (os primeiros e mais frutuosos séculos da
história do cristianismo) em casas particulares, as domus ecclesiae,
onde o pater familias ou o presbítero ou ancião presidia à
liturgia. Obviamente este cenário encontra-se hoje transformado e os
presbíteros do rito latino não são pater familias. Mas as famílias,
mesmo sem presbíteros, são domus ecclesiae, igreja doméstica. Podem e
devem, pois, celebrar a Páscoa em casa. Reúnam-se na noite da Vigília, acendam
as velas do Baptismo, rezem o Precónio, escolham e leiam as leituras da
Vigília, façam as preces, beijem a Cruz, abracem-se como se não houvesse amanhã
e partilhem uma bela refeição; bela pelo ambiente, não necessariamente por
aquilo que está sobre a mesa.
Afinal
depois de tantos anos a lutar por estabelecer a catequese familiar (que se
tornou obrigatória nalgumas paróquias através da dissolução forçada da
catequese dita “tradicional”), ela foi imposta pela conjuntura de saúde
pública. Mas funciona mesmo? Sim e Não. A catequese deve ser sempre familiar,
mesmo que seja tradicional. Já os antigos catecismos, os de 1992, traziam um
caderninho com folhas destacáveis para os pais usarem em casa. Talvez teria
sido preferível renovar esse material sem fazer alternância entre a sessão
“paroquial” e a sessão “familiar” da catequese, visto que, em muitos casos,
redundou numa participação apenas quinzenal na Eucaristia e numa sessão
quinzenal de catequese. Por outras palavras, para muitos, a catequese familiar
resultou em ter apenas metade da catequese e da participação comunitária que
tinham. E a “escola paroquial de pais” ou reuniões de pais para preparar a
“sua” sessão de catequese doméstica, não se fizeram ou depressa acabaram, na
maioria dos casos. A estrada era e é promover a sessão familiar semanal em
paralelo com a catequese paroquial semanal. Porque as crianças não vão à escola
semana sim, semana não. Perdão, agora não vão mesmo.
Felizmente,
nalgumas famílias recuperou-se o lugar do antigo “oratório”. Pela primeira vez
na vida, rezaram juntos em casa. O Crucifixo, a Bíblia, a Senhora de Fátima e
uma vela juntaram-se numa mesa e recordam-nos que há uma outra vida que não se
vê, mas se sente.
3. Renovação
pastoral do Tríduo e da Visita Pascal.
Alguns
profetas e videntes já clamam que esta crise vai aprofundar as raízes
espirituais das pessoas, das famílias e das paróquias. Pessoalmente, acho que
não. Passado o choque das semanas ou meses de reclusão, as Igrejas vão
encher-se durante alguns Domingos, para dar graças a Deus por aqui andarmos, os
que por aqui ainda estivermos ou estiverem. Mas, depois, os dias de sol
continuarão a convidar-nos a ir para a praia ao Domingo, ou a ficar na cama nos
dias de chuva. E o fim da Quaresma e início da Semana Santa
voltará a ser a melhor altura do ano para os estudantes irem ter todo o tipo de
experiências a Benidorm e lugares afins. Esta nova sede de espiritualidade não
vai durar, em termos colectivos. Algumas pessoas e famílias estão mesmo a
reflectir sobre os valores da vida e irão introduzir mudanças sérias e
permanentes. Pelos piores motivos, alguns nunca esquecerão esta pandemia. Mas,
como sempre, para alguns carpe diem significará aproveita o
tempo e, para outros, goza o dia.
O
que é certo e inegável é que este ano não haverá Visita Pascal. Nem no Alto
Minho! Quem diria! Porque é uma tradição secular – dizem alguns. Tão secular
que…, começou talvez em fins do século XIX e não se consolidou em muitas
paróquias até depois da Segunda Guerra. A Visita Pascal é, obviamente, um gesto
próprio de uma sociedade abastada. E, nesse sentido, tem virtudes e defeitos.
Nalgumas paróquias, a Missa de Páscoa é mais triste que um funeral, porque não
há grupo coral disponível…, não há leitores nem acólitos e, sobretudo, há a
pressa de sair com o compasso. Não são poucos aqueles cristãos que trocam a
sexta-feira santa pela segunda de Páscoa, para poderem estar na visita pascal.
Tendo nascido na Venezuela, sempre me impressionou que, em Portugal, não se
nota a diferença na sexta-feira santa: os comércios estão abertos, a maior
parte dos que frequentam a Eucaristia aos Domingos não participam na celebração
da Paixão e há um alvoroço desmedido nas ruas e nas casas, como se não
fizéssemos memória da morte do Senhor Jesus.
Talvez
este ano, passados Abril e Maio, algures pelo verão, possa ser possível ensaiar
uma forma de visita pascal à italiana. Na Itália, o pároco visita as
famílias em data mais ou menos combinada; nas cidades, colocam um aviso na
porta dos prédios a dizer que virá no dia tal… E essa visita demora algum
tempo: reza com a família, lê a Bíblia, abençoa cada um e cada uma individualmente.
E é na Quaresma! Talvez algumas paróquias se decidam a transformar a Visita
Pascal numa pequena liturgia familiar, durante todos os Domingos do Tempo
Pascal, e assim o pároco visitará mesmo cada casa, evitando-se o odioso de
parecer que envia um mensageiro a recolher os envelopes do folar, quando há
vários compassos em simultâneo.
A
situação que vivemos não é feliz. Mas é um sinal dos tempos que temos de ler e
fazer frutificar. É triste e doloroso o jejum eucarístico ao qual fomos
forçados. O Cardeal Ratzinger, no seu livro Deus próximo de nós, recorda
como alguns santos e ascetas praticavam um jejum eucarístico voluntário. Este pode
ser ocasião para valorizarmos mais e melhor a Quinta-feira santa, o Corpo
de Deus e a adoração eucarística semanal. O que ficar, depois deste drama,
em termos pastorais e espirituais, ficará por um esforço acrescido.
Acomodamo-nos depressa.
O dia do Senhor é o
Senhor dos dias
A expressão é de um anónimo do século IV (Pseudo-Eusébio de Alexandria, Sermão 16: PG 86, 416): “o dia do Senhor é o Senhor dos Dias”, quer estejamos em casa ou na igreja. O rabino Avraham Heschel, comentando a desgraça da destruição do Templo de Jerusalém, afirma que o “sábado é o templo do espaço”. Para nós, o Domingo é o Templo do Espaço: “Dia do Senhor, Dia de Cristo, Dia da Igreja, Dia do Ser humano/família, Dia dos Dias”, como lhe chamou João Paulo na sua Carta apostólica Dies Domini.
Mas não percamos tempo a lamentar a impossibilidade de celebrar o Domingo e a Páscoa. Estes tempos questionam a nossa fé e a nossa verdadeira vivência de que “os adoradores que o Pai deseja devem adorá-l’O em espírito e verdade” (Jo 4,23). Até porque “o Filho do Homem até do sábado é senhor” (Mc 2,28).
P. Pablo Lima, biblista
In Notícias de Viana, 01 e 08 de Abril, ed. 1932 e 1933, p. 3
In Diário do Minho, 03,04,05 e 06 de Abril, pp. 16 e 17.
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