quinta-feira, 9 de abril de 2020

O dia do Senhor é o Senhor dos dias (versão cor.)


Cristo Crucificado-Ressuscitado, José Rodrigues, 1997
Capela do Seminário de Viana do Castelo (foto R.C.)

O dia do Senhor é o Senhor dos dias

            É legítimo sentir nostalgia, tristeza ou saudade pela impossibilidade de “celebrar a Páscoa” neste ano, dadas as terríveis circunstâncias que estamos a viver. No entanto, este é um momento de delicada responsabilidade social e cristã e a única atitude moralmente correcta é permanecer em casa e evitar o contacto social, para travar o alastramento da pandemia. Já bastam os profissionais de saúde, de segurança e outros obrigados a permanecer ao serviço, com horários desumanos, para ajudar quem precisa, bem como trabalhadores cujas ocupações são essenciais para evitar um colapso ainda maior de bens e serviços.
            Há muita hipocrisia por aí, por parte de indivíduos e instituições, e não deixa de provocar revolta ouvir as entrevistas e comentários em que se fala da “economia” como uma super-estrutura independente das “pessoas”, que vale por si mesma e que tem de ser salva a toda custa. A economia são as pessoas concretas, de carne e osso, que verão os seus empregos e rendimentos coarctados por esta terrível situação. E isso pode trazer situações diversas de fome e doença. Todos – mesmo todos – teremos de corrigir o nosso conceito de “qualidade de vida”, prescindir de certos luxos que, afinal talvez não trouxessem muita qualidade…, de modo a garantir que as necessidades básicas serão satisfeitas e, nessa medida, reaprender outros prazeres da vida simples. É curioso que autores laicos como Matt Haig (“O mundo à beira de um ataque de nervos”), Alain de Botton (“Status Ansiedade”) e Duane Elgin (“Simplicidade voluntária”), para além dos activistas ambientais como a Greta Thunberg (“A nossa casa está a arder”) nos alertem para a urgência de estilos de vida sustentáveis, que estamos agora a praticar de forma forçada. Mais curioso ainda é que, ao ensinar-nos novos paradigmas de consumo que se opõem ao coleccionismo e açambarcamento de bens em ordem a uma maior fruição do que realmente temos, cunharam uma formulação laica de um princípio completamente evangélico, “ter menos é ter mais”. Em inglês, para alguns, tem sempre outro charme: “less is more”.
            Com estas premissas, é legítimo, mas também inútil, lamentarmos a constrição de permanecer em casa durante a Páscoa. Compreendo o sofrimento dos cristãos, das comunidades e seus pastores, por não poder celebrar o Domingo de Ramos e o Santo Tríduo Pascal. Eu também sofro. Mas tenho dúvidas de que esta multiplicação de missas online seja a atitude correcta. Agora, até à segunda-feira há missa nalgumas paróquias… virtuais. Com pertinência, o bispo espanhol de Teruel y Albarracín, António Gómez Cantero, não escreveu só a explicar o quê e como celebrar, mas também a sugerir mais contenção nas redes sociais por parte do seu presbitério. Obviamente há publicações e celebrações de qualidade muito duvidosa. Além disso, as novas “missas do facebook” (com ou sem “filtros” activos) promovem a mesma – ou pior – passividade litúrgica de que nos queixámos nas paróquias. Pessoalmente creio que faz mais sentido que uma família se reúna a ler a Bíblia, rezar as preces em conjunto e fazer um momento de silêncio e comunhão espiritual com o ecrã desligado do que a “assistir” aos enquadramentos forçados no telemóvel. Ou, então, que vejam na tv.
            Por outro lado, se calhar, não há motivos para estar “tão” tristes por este ano não celebrarmos a Páscoa comunitariamente. Daqui podem vir reflexões e mudanças que todos desejávamos fazer, mas que não tínhamos nem coragem nem desculpas legítimas para as pôr em prática.

1. A data da Páscoa: intransferível?
Não é verdade. A data da Páscoa não tem de ser monolítica. De facto, não é. Lamentavelmente, os cristãos celebram a Páscoa em duas datas: o calendário gregoriano para a Igreja Católica e igrejas protestantes e e o calendário juliano para as igrejas orientais e ortodoxas. O resultado é que todos os anos os cristãos celebram a Páscoa em dois domingos diferentes, que podem chegar a ter quinze dias de intervalo. Este ano, por exemplo, os cristãos ortodoxos celebrarão o Domingo de Páscoa no dia 19 de Abril, uma semana depois dos católicos e protestantes. E, em Jerusalém, quantos peregrinos que lá vão para celebrar a Semana Santa descobrem, ao chegar, que a Vigília Pascal é de manhã e não à noite, porque ainda seguem o horário pré-conciliar do status quo nos lugares santos?
            Durante os primeiros séculos, a data da Páscoa foi motivo de grandes controvérsias. Um grupo de cristãos orientais, chamados quatordecimanos, celebravam a Páscoa no dia catorze de Nisan, como os hebreus, quer fosse um Domingo ou um dia da Semana. Para além destes, outro grupo, conhecido como os protopasquitas, celebravam a Páscoa sempre no Domingo a seguir aos hebreus. Porém, como o calendário judaico da época era bastante confuso, por vezes, estes grupos celebravam a Páscoa um mês antes dos outros cristãos e mesmo antes do equinócio. Por isso, o Concílio de Niceia (325 d.C.) prescreveu que a Páscoa fosse celebrada no Domingo seguinte à primeira lua cheia da Primavera. Passando à frente delicadas e complexas questões de calendário e contagem, importa recordar que o mesmo Concílio de Niceia proibiu que a Páscoa cristã coincidisse com a Páscoa hebraica. E isso obrigou a alguns reagendamentos durante alguns anos… Finalmente, foram os mesmos judeus, já na Idade Média, que (nos) resolveram o problema quando definiram que a Páscoa judaica só pode ser celebrada nas segundas, terças, quintas e sábados. Por conseguinte, a data da Páscoa, mesmo pretendendo sermos fiéis à cíclica celebração da Paixão e Morte de Jesus, não tem de ser forçadamente numa única data.
            Recordemos que a autoridade apostólica (e científica, na época) do Papa Gregório XIII, através da bula Inter gravíssimas, decretou que, no ano 1582, depois da quinta-feira 4 de outubro, seria sexta-feira… 15 de outubro! E, dessa forma, corrigiu um erro de dez dias no equinócio da Primavera. Portugal foi um dos primeiros países a aderir à Reforma gregoriana, naquele mesmo ano. Mesmo sendo certo que a mudança que o Papa pôs em curso não afectou a regularidade do Domingo, chama-nos a atenção de que o calendário é uma realidade convencional que pretende ajustar ou ordenar uma realidade natural. Por conseguinte, é passível de melhorias e alterações. Em jeito de provocação, fica esta pergunta sem resposta: enquanto a marcação dos meses, semanas e dias pretende organizar os ciclos de rotação e translação da Terra à volta do sol, a sequência dos dias da semana é apenas uma realidade cumulativa ou tradicional. Isto é, este dia em que escrevo é quarta-feira porque ontem foi terça-feira e, assim, de forma ascendente, até à perda da memória colectiva. Pois é nessa perda da memória colectiva que fazemos um acto de fé ao considerar que após séculos de invasões bárbaras e muçulmanas, de guerras entres povos na Europa e no Oriente…, nunca se perdeu a perfeita sequência dos dias, desde o Domingo da Ressurreição do Senhor. Portanto, é possível que, em termos sequenciais e rigorosamente históricos, hoje não seja quarta-feira e daqui por quatro dias não seja Domingo. Mas até pode ser que sim.
            Tendo isto claro, este ano punha-se uma questão de ordem prática. É impossível celebrar comunitariamente a Santa Vigília da Ressurreição. Seria possível alterar a data. Mas não é possível saber quando seria seguro celebrar novamente a Vigília. Portanto, na incerteza, mantém-se a data. Foi o que Roma fez pela mão do Cardeal Sarah. Roma locuta, causa soluta. Mas Roma tinha a legitimidade de decidir doutro jeito, ao contrário do que escreveu o cardeal Sarah, mas, simplesmente, não era oportuno reagendar a Páscoa. Por outras palavras, não estejamos particularmente tristes por pensar que só na noite de 11 de Abril é que o Senhor ressuscitou. Além disso, e se as circunstâncias o permitirem, grande parte da Vigília Pascal pode ser celebrada na Vigília de Pentecostes; ou mesmo por altura do Corpus Christi, etc…

 2Liturgia e catequese familiar
            No judaísmo rabínico (o único que sobreviveu dos muitos judaísmos do tempo de Jesus à data da destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C.), a Páscoa é uma celebração familiar, é uma liturgia doméstica. O principal rito (ou sacramento, se esta palavra nos chamar ainda mais a atenção) do judaísmo não é celebrado na sinagoga, mas em casa. E a Igreja, que nasceu sob perseguição e sem edifícios de culto, reuniu-se durante séculos (os primeiros e mais frutuosos séculos da história do cristianismo) em casas particulares, as domus ecclesiae, onde o pater familias ou o presbítero ou ancião presidia à liturgia. Obviamente este cenário encontra-se hoje transformado e os presbíteros do rito latino não são pater familias. Mas as famílias, mesmo sem presbíteros, são domus ecclesiae, igreja doméstica. Podem e devem, pois, celebrar a Páscoa em casa. Reúnam-se na noite da Vigília, acendam as velas do Baptismo, rezem o Precónio, escolham e leiam as leituras da Vigília, façam as preces, beijem a Cruz, abracem-se como se não houvesse amanhã e partilhem uma bela refeição; bela pelo ambiente, não necessariamente por aquilo que está sobre a mesa.
            Afinal depois de tantos anos a lutar por estabelecer a catequese familiar (que se tornou obrigatória nalgumas paróquias através da dissolução forçada da catequese dita “tradicional”), ela foi imposta pela conjuntura de saúde pública. Mas funciona mesmo? Sim e Não. A catequese deve ser sempre familiar, mesmo que seja tradicional. Já os antigos catecismos, os de 1992, traziam um caderninho com folhas destacáveis para os pais usarem em casa. Talvez teria sido preferível renovar esse material sem fazer alternância entre a sessão “paroquial” e a sessão “familiar” da catequese, visto que, em muitos casos, redundou numa participação apenas quinzenal na Eucaristia e numa sessão quinzenal de catequese. Por outras palavras, para muitos, a catequese familiar resultou em ter apenas metade da catequese e da participação comunitária que tinham. E a “escola paroquial de pais” ou reuniões de pais para preparar a “sua” sessão de catequese doméstica, não se fizeram ou depressa acabaram, na maioria dos casos. A estrada era e é promover a sessão familiar semanal em paralelo com a catequese paroquial semanal. Porque as crianças não vão à escola semana sim, semana não. Perdão, agora não vão mesmo.
            Felizmente, nalgumas famílias recuperou-se o lugar do antigo “oratório”. Pela primeira vez na vida, rezaram juntos em casa. O Crucifixo, a Bíblia, a Senhora de Fátima e uma vela juntaram-se numa mesa e recordam-nos que há uma outra vida que não se vê, mas se sente.

3. Renovação pastoral do Tríduo e da Visita Pascal.
            Alguns profetas e videntes já clamam que esta crise vai aprofundar as raízes espirituais das pessoas, das famílias e das paróquias. Pessoalmente, acho que não. Passado o choque das semanas ou meses de reclusão, as Igrejas vão encher-se durante alguns Domingos, para dar graças a Deus por aqui andarmos, os que por aqui ainda estivermos ou estiverem. Mas, depois, os dias de sol continuarão a convidar-nos a ir para a praia ao Domingo, ou a ficar na cama nos dias de chuva. E o fim da Quaresma e início da Semana Santa voltará a ser a melhor altura do ano para os estudantes irem ter todo o tipo de experiências a Benidorm e lugares afins. Esta nova sede de espiritualidade não vai durar, em termos colectivos. Algumas pessoas e famílias estão mesmo a reflectir sobre os valores da vida e irão introduzir mudanças sérias e permanentes. Pelos piores motivos, alguns nunca esquecerão esta pandemia. Mas, como sempre, para alguns carpe diem significará aproveita o tempo e, para outros, goza o dia.
            O que é certo e inegável é que este ano não haverá Visita Pascal. Nem no Alto Minho! Quem diria! Porque é uma tradição secular – dizem alguns. Tão secular que…, começou talvez em fins do século XIX e não se consolidou em muitas paróquias até depois da Segunda Guerra. A Visita Pascal é, obviamente, um gesto próprio de uma sociedade abastada. E, nesse sentido, tem virtudes e defeitos. Nalgumas paróquias, a Missa de Páscoa é mais triste que um funeral, porque não há grupo coral disponível…, não há leitores nem acólitos e, sobretudo, há a pressa de sair com o compasso. Não são poucos aqueles cristãos que trocam a sexta-feira santa pela segunda de Páscoa, para poderem estar na visita pascal. Tendo nascido na Venezuela, sempre me impressionou que, em Portugal, não se nota a diferença na sexta-feira santa: os comércios estão abertos, a maior parte dos que frequentam a Eucaristia aos Domingos não participam na celebração da Paixão e há um alvoroço desmedido nas ruas e nas casas, como se não fizéssemos memória da morte do Senhor Jesus.
            Talvez este ano, passados Abril e Maio, algures pelo verão, possa ser possível ensaiar uma forma de visita pascal à italiana. Na Itália, o pároco visita as famílias em data mais ou menos combinada; nas cidades, colocam um aviso na porta dos prédios a dizer que virá no dia tal… E essa visita demora algum tempo: reza com a família, lê a Bíblia, abençoa cada um e cada uma individualmente. E é na Quaresma! Talvez algumas paróquias se decidam a transformar a Visita Pascal numa pequena liturgia familiar, durante todos os Domingos do Tempo Pascal, e assim o pároco visitará mesmo cada casa, evitando-se o odioso de parecer que envia um mensageiro a recolher os envelopes do folar, quando há vários compassos em simultâneo.
            A situação que vivemos não é feliz. Mas é um sinal dos tempos que temos de ler e fazer frutificar. É triste e doloroso o jejum eucarístico ao qual fomos forçados. O Cardeal Ratzinger, no seu livro Deus próximo de nós, recorda como alguns santos e ascetas praticavam um jejum eucarístico voluntário. Este pode ser ocasião para valorizarmos mais e melhor a Quinta-feira santa, o Corpo de Deus e a adoração eucarística semanal. O que ficar, depois deste drama, em termos pastorais e espirituais, ficará por um esforço acrescido. Acomodamo-nos depressa.

O dia do Senhor é o Senhor dos dias  

           A expressão é de um anónimo do século IV (Pseudo-Eusébio de Alexandria, Sermão 16: PG 86, 416): “o dia do Senhor é o Senhor dos Dias”, quer estejamos em casa ou na igreja. O rabino Avraham Heschel, comentando a desgraça da destruição do Templo de Jerusalém, afirma que o “sábado é o templo do espaço”. Para nós, o Domingo é o Templo do Espaço: “Dia do Senhor, Dia de Cristo, Dia da Igreja, Dia do Ser humano/família, Dia dos Dias”, como lhe chamou João Paulo na sua Carta apostólica Dies Domini.
          Mas não percamos tempo a lamentar a impossibilidade de celebrar o Domingo e a Páscoa. Estes tempos questionam a nossa fé e a nossa verdadeira vivência de que “os adoradores que o Pai deseja devem adorá-l’O em espírito e verdade” (Jo 4,23). Até porque “o Filho do Homem até do sábado é senhor” (Mc 2,28).

P. Pablo Lima, biblista

In Notícias de Viana, 01 e 08 de Abril, ed. 1932 e 1933, p. 3 

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