sábado, 25 de abril de 2020

Já chegamos?!


III Domingo de Páscoa – A
26 de Abril de 2020
Act 2, 14. 22-33; Sal 15 (16); 1 Pd 1, 17-21; Lc 24, 13-35

Michelangelo Merisi "Caravaggio", National Gallery of London, 1601, óleo sobre tela, 141x196cm

Já todos fizemos a experiência de uma longa viagem que parece não ter fim. A cada cinco minutos, olhamos para o relógio e pensamos “o tempo não passa”. De repente, o nosso vizinho ou outra pessoa começa a falar e a conversa anima-se. Quando damos conta, a viagem chegou ao fim. “Que depressa passou!”. Assim são voláteis os nossos sentimentos. De facto, há uma enorme diferença entre o tempo cronológico e o tempo psicológico ou kairológico, isto é, o tempo da oportunidade, da decisão, da mudança, o tempo “grávido de sentido”.
O relato dos discípulos “a caminho de” e não “de Emaús” é um dos mais finos relatos escritos por São Lucas. Acontece ainda no dia da Ressurreição, ainda que nós o leiamos duas semanas depois na liturgia dominical. Apresenta-nos um drama transformado em festa. O drama tem duas facetas. Em primeiro lugar, o “fiasco” da morte do Messias. “O que se refere a Jesus de Nazaré, profeta poderoso em palavras e obras diante de Deus e de todo o povo” – foi assim que os dois increparam Jesus depois de O terem acusado de ser “o único” a ignorar o que tinha acontecido em Jerusalém. Há uma ironia bonita neste pormenor. Como quando alguém fala mal doutra pessoa mesmo diante do seu nariz sem saber que é a pessoa em causa. Mal ou bem. Neste caso, muito bem: fazem uma profissão de fé belíssima, seguida da desgraça: “os príncipes dos sacerdotes e os nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e crucificado… é já o terceiro dia… Nós esperávamos que fosse Ele…”. Confessam, pois, a sua frustração e depressão. Foi uma tragédia. Tinham posto a sua esperança n’Ele. Mas foi morto como um criminoso do piorio.
A segunda faceta deste drama é a dissidência dos discípulos. Delicadamente, Lucas omite os seus nomes[1]. Mas eram certamente do grupo íntimo porque “regressaram a Jerusalém e encontraram reunidos os Onze”. Isto é, pertenciam à esfera muito próxima daqueles que podiam entrar no cenáculo, quando ainda estavam “reunidos com medo dos judeus”. Este sigilo de Lucas tem feito que muitos imaginem nestes dois as mais variadas hipóteses: um casal, duas mulheres, dois dos mesmos apóstolos! O que é certo é que estes dois abandonaram Jerusalém e viraram as costas à Igreja nascente do lado aberto de Cristo na cruz. Como fez Tomé também. Desde muito cedo, encontram-se as querelas e disputas que fazem que tantos digam “eu não vou mais, não participo, não suporto essa gente, são todos uns hipócritas, são falsos, é tudo uma mentira…”. Para desfazer as “mentiras” é preciso regressar às Escrituras e é por aí que Jesus começa, explicando-lhes desde Moisés até aos profetas.
Porquê não O reconhecem? Porquê todas as personagens (a Madalena, estes dois, os apóstolos no lago…) que encontram Jesus Ressuscitado teimam em não reconhecer Aquele que tanto amavam e com quem conviveram de perto?! É que, após a Ressurreição, a pessoa é a mesma e não é. A Ressurreição não é um passo atrás, uma inversão ao momento anterior à morte; a Ressurreição é um passo em frente, um salto (páscoa = salto) para uma existência plena e renovada, em Deus. A ressurreição não é ressuscitação de um cadáver; não é retrocesso, é progresso! A segunda razão do não reconhecimento é que agora Jesus se apresenta sub specie panis et vini. O caminho de reencontro com o Senhor não pode ser outro senão o do regresso à sinapse eucarística, à comunhão do Seu Corpo e Sangue, que neste momento nos é impedida e que deve aumentar em nós o desejo do reencontro com o Sacramento do Altar. Que bonita é a conclusão do relato: “sentou-se à mesa, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e deu-lho. Nesse momento, abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-n’O. Mas Ele desapareceu”. E como ficaram? Com o pão eucarístico nas mãos…

[1] Na verdade, Lucas (24,18) refere o nome de um: Kleopás. Mas quem é este Cléofas, cujo nome só aparece aqui no evangelho de Lucas? João (19,25) diz que, aos pés da cruz, junto a sua mãe estava uma Maria “de Klopás” (mulher ou filha?). Se for o marido dessa Maria, será Alfeu, o pai de Tiago (cfr. Lc 6,15)? Marcos (15,40) diz que a Maria que estava aos pés da cruz era “de Tiago Menor e José”; portanto, aqui parece significar a mãe deles e não a esposa de Zebedeu e mãe do outro Tiago e João (Mc 10,35), que seria Salomé, que também estava aos pés da cruz (Mt 28,56 e Mc 15,40). Por outras palavras, Lucas refere um nome de alguém… que não sabemos mesmo quem é e que era um nome bastante comum… Cléofas é cada um que quiser lá estar.

P. Pablo Lima
  
In Notícias de Viana (1935), 23 de Abril de 2020, p. 7.

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