sexta-feira, 29 de maio de 2020

O vento de Deus


31 de Maio de 2020
Act 2, 1-11; Sal 103 (104); 1 Cor 12, 3b-7. 12-13; Jo 20, 19-23

 

          “Agora que acaba a Páscoa, vai começar a Páscoa” – ouvi há poucos dias. Foi um desabafo de um padre que preparava os círios pascais para benzer ou entronizar na Vigília e Domingo de Pentecostes. Fiquei comigo a pensar que os Apóstolos devem ter dito algo semelhante. De facto, a Igreja nasceu quando “acabou a Páscoa”, ou, ainda melhor, a Igreja nasceu no cumprimento e termo da Páscoa. Este ano, por (in)feliz coincidência, o culto e a acção pública da Igreja (re)começam no Domingo de Pentecostes, um pouco como nos tempos apostólicos. Sublinho acção “pública”, porque, em termos particulares, na oração, na caridade, no ensino e até nos sacramentos, a Igreja não parou (de crescer). Este ano, então, o Pentecostes tem um sabor especial.
          Em nenhum local do nosso país o Espírito Santo recebe um culto popular tão forte como nos Açores. Atribui-se à rainha Santa Isabel (e, indirectamente, a D. Dinis) o rito no qual um pobre era coroado por um dia. A sabedoria e sensibilidade franciscanas encontraram na devoção da rainha uma oportunidade para espalhar o culto do Espírito Santo, que em toda a Europa se encontrava em declínio. Enquanto primeiros evangelizadores do arquipélago (séc. XV), longe do poder real e eclesiástico, os frades adaptaram as ideias milenaristas de Joaquim de Fiore, monge cisterciense do séc. XII, segundo o qual após o Império do Pai (o Antigo Testamento) e o Império do Filho (do Novo Testamento até ao fim do primeiro milénio), teria chegado o Império do Espírito Santo. “Império” foi o nome dado às capelas ou oratórios onde se conserva a bandeira do Espírito Santo, a coroa e o ceptro que passam de família em família, desde o Domingo de Páscoa até ao Pentecostes. “Imperador” é o mordomo da festa anual ou daquela semana, normalmente uma criança… O pároco benze, incensa e impõe a coroa e o ceptro (somos desde o Baptismo um povo, sacerdotes, profetas e reis), enquanto se canta o Veni, Creator Spiritus. E a festa termina com um banquete, o bodo, para alegrar os mais necessitados, no dia de Pentecostes.
          Sem o Espírito de Deus, deixamos de respirar. Etimologicamente, spiritus (em latim, masculino), pneuma (em grego, neutro) ou ruah (em hebraico, feminino) significa vento. Precisamos do Espírito em cada respiro da nossa vida humana e cristã. O ar que respiramos, atravessa a nossa laringe e aparelho fonador e transforma-se em som, em voz. Sem o Espírito, nem sequer conseguimos falar, nem mal nem bem. Curiosamente, o Pentecostes joanino (bem diferente do Pentecostes lucano da primeira leitura) afirma que “Jesus soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes, serão perdoados” (Jo 20,22-23). Ainda hoje o bispo consagrante sopra o óleo do santo Crisma que será depois usado no baptismo, na confirmação e na ordem. E antes da consagração, o presbítero impõe as mãos sobre o pão e o vinho. Esta oração é tão importante que, sem ela, não haveria consagração. E, durante séculos, os ortodoxos acusaram os católicos de não celebrar validamente a Eucaristia porque, no cânone romano, a menção ao Espírito Santo é implícita e não explicita. Por outras palavras, é o Espírito o garante e o agente da acção da Igreja: Ele reina e impera na pregação da Igreja, no Perdão, no Baptismo, na Eucaristia, em cada sacramento e palavra da nossa vida. Que seria de nós sem o vento de Deus?

P. Pablo Lima

In Notícias de Viana (1940), 28 de Maio de 2020, p. 7.

Sem comentários:

Enviar um comentário