quarta-feira, 3 de junho de 2020

Amou tanto, tanto que…

Solenidade da Santíssima Trindade 
07 de Junho de 2020 
Act 2, 1-11; Sal 103 (104); 1 Cor 12, 3b-7. 12-13; Jo 20, 19-23 
Trindade de Nicolò Semitecolo - pormenor(1370), Museu diocesano de Pádua 

    A revelação da comunhão trinitária é a marca distintiva da fé cristã. Não existe paralelo semelhante em nenhuma religião, antes ou depois do cristianismo. As religiões antigas – orientais, asiáticas, greco-romana, nórdica, pre-colombiana, etc – moviam-se no espectro do politeísmo, dentro do qual admitiam um deus superior que imperava sobre os outros deuses (mesmo a tríade hindu – Brahma, Vishnu, Shiva – é apenas uma hierarquia de poder dentro do panteão das divindades, mais próxima do henoteísmo). O judaísmo – que é contemporâneo do cristianismo – e o islão – que é posterior e devedor ao cristianismo – não reconheceram e rejeitaram a plenitude da revelação do Filho de Deus e mantiveram-se estrictamente no monoteísmo. As filosofias religiosas – como o budismo e a moderna new-age – são panteístas (não existe a divindade, tudo é divino). Por sua vez, Jesus Cristo revelou-nos que Deus são três pessoas distintas, Pai, Filho e Espírito Santo, mas um só Deus. E é a isto que chamamos monoteísmo trinitário. 
    O termo “trindade” não aparece na Bíblia. É resultado da reflexão teológica. Mas a vida, o discurso e a consciência de Jesus são trinitários: “Eu e o Pai somos Um”; “Eu vos enviarei o Espírito da Verdade”; “Ide e baptizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. E, na esteira de Jesus, depressa os apóstolos e São Paulo, particularmente, começaram a usar saudações trinitárias nas suas cartas, como aquela com que começa a Eucaristia e que é retirada da carta aos Coríntios (2 Cor 13,11-13): “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”. Conhecemos, pois, a Trindade porque aprouve a Deus abrir-nos a Sua divina intimidade. Quando começamos a frequentar uma casa, uma pessoa ou uma comunidade, pouco a pouco, na medida da abertura das pessoas, começamos a conhecê-las por dentro, na sua forma de viver, pensar e ser, na sua privacidade, na sua identidade profunda e única. Sabemos que Deus é Trindade, não porque o imperador Constantino e a Igreja o inventaram (como diz a vulgata dos pseudo-historiadores contemporâneos, testemunhas de Jeová e outros), mas porque “Deus amou tanto, tanto o mundo que lhe entregou o Seu Filho Unigénito” (Jo 3,16). Sabemos que Deus é Trindade porque Deus no-lo quis revelar pela vida e palavra de Jesus. Se assim não tivesse sido, nunca o saberíamos e pensaríamos ainda hoje que Deus, antes da criação do mundo, era solitário. 
    De forma irresponsável, é costume dizer-se em âmbito homilético, que “a Trindade é um mistério” e com isto pretende dizer-se que é incompreensível, inacessível e, em certa medida, irracional. Porém, “mistério” na Sagrada Escritura não significa o “arcano”, o insulto à razão. Na Bíblia, o “mistério” é o plano do amor de Deus que “foi mantido em silêncio por tempos eternos, mas agora foi manifestado” (Rm 16,25). “Mistério” na Bíblia significa uma realidade tão grande, como Deus, que ocuparemos toda a vida a meditá-la, a pensá-la, sem nunca a abrangermos. Na verdade, quem poderá conhecer “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor de Cristo”? (Ef 3,18). 
    
    Nota artística: o óleo sobre madeira (64x69 cm) do qual acima apresentei apenas um pormenor do lado direito é uma das mais belas e invulgares representações da Trindade. Em primeiro lugar, o Espírito Santo columbomorfo surge sobre o ombro direito do Pai e não por cima d'Ele. Em segundo lugar, as feições do rosto do Pai são exactamente as mesmas do Filho, apenas com cabelo e barba compridas e umas rugas. Finalmente, o Pai não segura o filho no colo, em jeito de Pietà, como aparece algumas vezes, e a crucifixão do Filho surge sem a cruz... as mãos do Filho sobrepõem-se às do Pai que o segura e sustenta. É um gesto de uma ternura infinita, como se ambos estivessem cravados ao mesmo madeiro. Assim, a comunhão trinitária é representada em termos pictóricos, duma forma que ecoa na bula do Papa Francisco para o Ano da Misericórdia: "Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai" (Vultus misericordiae, 1)

P. Pablo Lima
In Notícias de Viana (1941), 04 de Junho de 2020, p. 7.



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